Vou ter que fazer uma prostatectomia, cirurgia de remoção da próstata – remoção total, no meu caso. O diagnóstico de câncer me evidenciou três certezas: já percorri mais da metade do meu caminho no mundo; o primeiro sinal concreto de finitude é inesquecível; e a próstata e a masculinidade estão diretamente ligadas.
Sim, o câncer de próstata é tão comum em homens quanto o de mama em mulheres. Sim, os prognósticos são muito positivos. Sim, a probabilidade de eu morrer disso, tendo apenas 58 anos de idade, é bem próxima de zero. De qualquer forma, desde que a biópsia comprovou os dois tumores, reduzi os ritmos e as ambições e entrei em compasso de espera.
ATITUDE MENTAL
Sou marinheiro de primeira viagem. Nunca fui internado nem operado. Nos primeiros dias, tive dificuldade de lidar com a aparente fatalidade da notícia. Durante toda a minha vida adulta, na grande maioria das vezes, fui eu quem decidiu embarcar nesta ou naquela aventura. Desta vez, não há muito que eu possa fazer com minhas próprias mãos para resolver o problema. Meu grau de controle efetivo sobre os fatos é mínimo.
Mas adotar uma atitude mental que me afaste da alienação, do catastrofismo e da autopiedade está plenamente ao meu alcance. Fugi de elucubrações como “por que diabos isso foi acontecer com um cara legal como eu?” ou “o que será de mim daqui a dois, cinco, dez anos?”. Isso apenas geraria mais ansiedade e dificultaria a aceitação. [Aceitação é diferente de conformismo, diga-se.]
DR. GOOGLE
Resisti bravamente à tentação de buscar alguma forma de amparo no dr. Google. Pesquisei o bastante apenas para me situar cientificamente dentro do problema. A cada dia tento aprender uma informação nova e relevante. [Um dado interessante, mas não surpreendente: os depoimentos de homens sobre suas experiências com o câncer de próstata são raros e vagos. As mulheres, ao contrário, são mais abertas sobre seus enfrentamentos com a mastectomia.]
Em vez de afundar no caos espiralado do dr. Google, dei o melhor de mim para construir dias agradáveis, priorizando atividades (sociais e unilaterais) que me trouxessem sentido e leveza, sem falsas ilusões. Bobagens como “pense que está tudo bem que tudo fica bem” nem passaram pela minha cabeça. Esses positivismos tolos, para não dizer tóxicos, me fazem rir. Até porque uma dose de medo e insegurança é necessária e recomendável; e no momento, para mim, estar bem é não ter câncer. Ponto.
EDUCAÇÃO E CONTEXTO
Consegui encontrar tempo para refletir sobre como nós, homens, chegamos aonde chegamos. Minha geração foi educada para esconder emoções, principalmente as negativas, como se a vida fosse um menu de vitórias constantes e alegrias permanentes. Para homens previsíveis, vulnerabilidade é fraqueza, fraqueza é uma vergonha e as vergonhas têm de ser ocultadas no fundo do porão.
Desde sempre, a cultura ocidental é muito injusta com mulheres, indivíduos LGTBQQIAA e pobres em geral (independentemente da cor da pele), que sofrem preconceitos e violências diariamente. No atual contexto de valorização da feminilidade e de autoafirmação das minorias, os héteros se tornaram vilões. Héteros brancos, como eu, pior ainda. Filmes, romances, séries e mídias tendem a nos retratar hoje em dia como eternos opressores e abusadores, ou como imaturos e imprestáveis ou como fracotes que enlouquecem por qualquer dorzinha.
FALAR DE SI
O homem tipicamente masculino não fala de si. Fala de política, de economia, de trabalho, de máquinas e, principalmente, de mulheres e competições. Mas não se abre sobre seus verdadeiros sentimentos. Conversando com minhas amigas, descobri que sou um raro exemplar de homem que expõe seus problemas, seus medos, sua masculinidade, seu câncer. Me orgulho de fazer parte dessa estranha espécie de “homem meio anti-homem” (risos). E eu nem sabia para que serve uma próstata.
Perguntei a vários homens mais ou menos da minha idade qual a função dessa glândula e onde ela se localiza. Nenhum soube me responder. Incrível… Os homens produziram as leis vigentes (redigidas para favorecer a eles mesmos, especialmente os brancos) e se autoatribuíram poderes superiores, mas desconhecem o próprio corpo. Faz sentido. O capitalismo – aliás, inventado por homens – sempre nos tratou como robôs produtivos e nos iludiu com efêmeras ilusões de poder e controle sobre os mais fracos e vulneráveis. Quanto mais ignorantes em relação a si mesmos, melhor para a sistema que criaram.
MASCULINIDADE
A remoção da próstata toca necessariamente no assunto mais inviolável do superficial universo masculino: a “masculinidade” (conceito cada vez mais difícil de definir). O processo cirúrgico tem como efeitos colaterais principais uma perda considerável – em alguns casos temporária, noutros irreversível – da capacidade de ereção e do autocontrole sobre a saída de urina. E sem próstata não há ejaculação – consequentemente, nada de esperma ou espermatozoides.
Tente imaginar o impacto dessas limitações na mente de homens “pintocêntricos” (eu não sou assim), identificados com estereótipos de virilidade, fertilidade e “dureza” (risos)… Essas minhas considerações estão mais ligadas ao pós-operatório da prostatectomia. Ainda não cheguei nessa fase. Tenho tentado viver um dia de cada vez. O fato é que mudanças irão ocorrer em meu corpo e terei de me adaptar.
+ DOIS TEXTOS
Leia os outros textos sobre a minha experiência com a “prostatectomia radical”:
Ah meu caro Vilas, você, como sempre, na direção oposta: a manada vai para um lado e você pro outro. Coragem é o que nunca te faltou!
Extremamente correto. Essas são minhas palavras sobre o texto. Força primo
Bom dia! Sergio Villas Boas, tens aqui uma nova seguidora. Quanta grandiosidade nesse texto. Gratidão por compartilhar. Me chamo Cristina.
Sérgio achei seu texto surpreendente e inédito.
Dificilmente homens relatam seus dramas com relação a saúde.
Você foi impactado mas tem o dom da escrita que é altamente terapêutico.
Imagino que ele se mostra como um novo potencial para uma nova fase da vida onde repensar atitudes , mais uma vez, se mostra como fato real , as mudanças são as únicas certezas que temos no decorrer de nossa existência.