A próstata e a prostatectomia. Prostatectomia é uma cirurgia de remoção parcial ou total da próstata. No meu caso, total. Fui operado pelo “método aberto” aqui na Itália em 1º/02/2024.
Os três primeiros dias no hospital foram bem difíceis. De madrugada, na primeira noite, comecei a quicar na cama como um peixe recém-tirado da água. Me sentia dentro de uma geladeira. Meus dentes batucavam. Apertei o botão de chamada da enfermaria.
Mal consegui pronunciar para a enfermeira “estou morrendo de frio!”. A moça envolveu-me em um segundo cobertor e disse que ia me injetar algo. O fato é que meia hora depois parei de tremer e me aqueci.
UM COLEGA
O Hospital de Sassuolo (a 15 km de Modena, 45 km da minha casa) tem horários de visitas rígidos: das 12h às 14h e das 18h às 20h. Patty esteve comigo nesses horários todos os seis dias de internação.
Eu tinha um colega de quarto: Alessandro Fabri (75 anos), também ele encrencado com sua próstata, mas por outros motivos, não por câncer, como eu.
Fomos retirados do bloco cirúrgico juntos e recebemos alta juntos. Dividimos o mesmo quarto e construímos um relacionamento de sobrevivência às dores e às incertezas.
COMPAGNIA DELLA PROSTATA
Passamos eternas horas olhando para o teto, em silêncio; ou falando sozinhos, sem nos importar com o que dizíamos; ou nos autoironizando; ou tirando sarro um do outro.
Sandro é naturalmente divertido (mas não sabe que é). Fanático por motos. Possui uma daquelas potentes, de não não-me-lembro-quantas-mil cilindradas. Criou um grupo de motoqueiros, do qual faz parte a sua esposa, Luiza, e outros vinte membros.
O nome do grupo? Compagnia della Prostata. Por quê? Porque oito dos quinze homens do bando já enfrentaram algum tipo de intervenção cirúrgica na próstata.
SUS ITALIANO
O SUS italiano existe desde 1978 e o sistema é muito parecido com o do SUS brasileiro. A diferença é que o tempo de espera e o estresse dos profissionais de saúde aqui são muito menores.
Mais que isso: você não se sente tratado nem como cliente ($) nem como criança com retardo mental; e os processos funcionam bem (escreverei sobre isso noutra ocasião).
Mas a saúde pública italiana está em xeque. Cortes contínuos no orçamento dessa área tornaram o sistema instável e desigual. Em regiões mais pobres, o atendimento pode ser precário.
PRIMEIRA REFEIÇÃO
Depois de quarenta horas de jejum, no segundo dia de hospital disseram que eu podia comer algo, e que me trariam o almoço dali a pouco. Eu estava faminto.
Uma enfermeira grandona com vozeirão me olhou bem nos olhos e disse: “Vamos colocar você sentado. Se você ver estrelas, luzes piscando ou ficar tonto, me avise, ok?”. Ok, respondi.
Fiquei sentado ali, na cama, por uns três minutos, com os pés balançando no vazio. “E aí?”, a grandona me perguntou. Estou ótimo, falei, todo animado, enquanto a Patty picava o filé de frango sem sal.
MUNDO GIROU
De repente, senti que precisava dizer “está rodando tudo”, mas… bum… desabei. Podia ter desmaiado de mil maneiras. A sorte foi ter pendido para o lado da cabeceira. O travesseiro me amorteceu.
Me lembro de recobrar os sentidos e ver a grandona segurando meu rosto entre suas mãos e me dizendo, bem de perto: “Você não pode se deixar cair assim. Tem de nos avisar antes, entendeu?”.
Naquele dia, Patty me deu comida na boca, de garfada em garfada. Eu estava fraco. Foi quando me dei conta de que as reais dificuldades estavam apenas começando.
MÚSICA-REMÉDIO
Durante a internação, ouvi música com as profundezas do meu ser. Música é nutrição para mim. O sublime contido na arte musical é um potente analgésico para dores físicas e emocionais.
Uma jovem enfermeira achou meio esquisito me ver com fones de ouvido regendo eu mesmo a Filarmônica de Berlim tocando Bach. Nenhuma dor poderia me doer.
A equipe de médicos e enfermeira(a)s do Hospital de Sassuolo foi fantástica de ponta a ponta, sem exceções. Dor, dificuldades e obstáculos eram inevitáveis, mas não faltaram atenção e gentileza.
MANHÃ REPENTINA
As dores, o episódio do desmaio e as insônias me abalaram, psicologicamente. Na média, atravessei a terceira noite mais desanimado que nas duas noites anteriores.
A reviravolta começou na manhã do domingo. De repente, todas as luzes se acenderam (inverno na Itália, tudo escuro lá fora) às 6h30 da manhã.
Pisquei os olhos para tentar me localizar. Vi um bando de enfermeiras no quarto. Eu já tinha visto seis trocas de turno, mas aquelas ali… era a primeira vez que as via. Sandro também.
MOVER-SE
“Bom dia, crianças!”, disse uma baixinha com sotaque do Leste Europeu: “Estamos aqui para lhes dar uma boa notícia: o período de descanso acabou!”.
Silêncio total. Eu não sabia o que pensar ou dizer. Estava sonhando? Ou seria um pesadelo? “A partir de agora”, ela completou, “vocês têm de se mover“.
Silêncio surreal. Era como se a gente estivesse noutro planeta. “O que a senhora quer realmente dizer com se mover?”, Sandro perguntou.
“Quero dizer que vocês dois têm que tirar as suas bundas sujas dessas camas e… CA-MI-NHAR!”, esclareceu. Pensei: caminhar? Mas… cazzo, dói tudo.
RESISTÊNCIA
A baixinha concluiu em seguida: “Agora que está tudo claro, eu e minhas colegas vamos buscar nossos apetrechos. Voltamos em cinco minutos. Preparem-se!”. E saíram. Silêncio total de novo.
Ouço a voz de Sandro: “Mas essas aí… quem são?”. “E eu é que sei? Espero que sejam da Resistência, não nazistas”, brinquei. “Que nada! faz tempo que a Resistência não trabalha aos domingos”, ele disse: “Aos domingos agora jogam golfe, quei bastardi“.
Tive vontade de dar uma gargalhada estrondosa, mas eu não conseguia rir, tossir, espirrar ou assoar o nariz sem sentir uma dor dos diabos no corte.
BRIGADA DE DOMINGO
Afetuosas e brincalhonas, quatro delas vieram até mim e outras quatro atenderam ao Sandro. Me ajudaram a me erguer (sentado na cama) e me deram uma boa lavada com panos e sprays.
“Essa tua camisola está um nojo”, me disseram. Estava mesmo. “Trouxe uma camiseta?” Sim, pode pegar ali, falei. “Agora você vai ficar em pé (escorado) uns minutos e depois sentado, ok?”
Sim, claro, falei, obrigado por me ajudar. E consegui. Fiquei em pé os três minutos previstos e sentado por tempo indeterminado. Não vi estrelas nem desmaiei. Batizamos a equipe de “a brigada de domingo”.
VIRADA PESSOAL
Enquanto contemplei meus vazios, a brigada de domingo deu uma super geral no quarto e nas camas.
Daquele momento em diante entrei realmente em processo de recuperação, acho.
Entendi que eu não podia simplesmente ficar ali deitado à espera da virada.
A possibilidade de virada estava em mim. Em minhas mãos.
+DOIS TEXTOS
Leia os outros textos sobre a minha experiência com a “prostatectomia radical”: