Então, por que vim para a Itália em 2016? É uma história longuíssima, mas vou tentar resumi-la em poucas linhas. Assim: antes de vir eu havia feito tudo o que quis como jornalista, escritor e docente no Brasil. Fui ótimo repórter, ótimo editor, ótimo biógrafo, ótimo professor de reportagens e de biografias & perfis. Tive cargos de prestígio em escolas importantes (uma delas eu mesmo ajudei a criar). Fui, principalmente, ótimo freelancer de 2003 a 2016: criativo, eficaz e sempre pontual.

Como escritor, ganhei o Prêmio Jabuti em 1998 com o livro “Os Estrangeiros do Trem N” (uma nova edição da obra deve ser lançada em breve). Publiquei ao todo dez livros de gêneros diversos e organizei cinco coletâneas de outros autores.
Aos 50 anos de idade (em 2015), porém, só me ofereciam o velho e chato “mais do mesmo”. O maior problema nem era tanto a repetição de projetos ou a falta de desafios interessantes. As circunstâncias (de trabalho e de remuneração) foram ficando mais e mais degradadas de 2001 para cá.
Outros dois fatores importantes: 1º) O Brasil me deprimia. A extrema direita raivosa, burra e retrógrada avançava com voracidade rumo ao poder, destilando ódio, repetindo o que aconteceram nos EUA de Donald Trump (2015-2020). 2º) Depois de vinte anos morando em São Paulo, aceitei que a cidade nunca mudaria, que ela nunca se tornaria uma cidade “humanizada”.
Eu estava muito insatisfeito, no geral, e quase tudo me incomodava. Tem a ver com introversão e hipersensibilide. Sou uma “pessoa altamente sensível” (PAS) e introvertida, uma combinação meio rara que me dá uma série de poderes, mas que também me cria muitos obstáculos.
PASSAPORTES
Quando me senti realmente estagnado e sem saída (não é nada bom sentir isso) em São Paulo, achei que devia resgatar um projeto que me atraía desde bem jovem: ficar longe do Brasil por tempo indeterminado. Isso mesmo: fazer parte de outra cultura, ser estrangeiro, encarar a dureza de entender os outros e de me fazer entender.
Já tinha passaporte italiano (meu avô materno era italiano), mas não falava quase nada do idioma “inventado” por Dante Alighieri. Confesso que a Itália nunca esteve em meus planos como país de residência. Meus olhos sempre estiveram voltados para Nova York, onde morei entre 1992-1994, quando fiz as pesquisas e entrevistas para “Os Estrangeiros do Trem N“.
Optar pela Itália era conveniente. Ideia da Patrícia (minha esposa), não minha. Juntos, a gente tinha visitado (como turistas) Roma, Veneza, Florença e Siena. Não tínhamos a menor ideia de como seria viver na Itália. Foi um salto no escuro.
E por que Florença? Das poucas cidades italianas que conhecíamos Florença foi a que mais nos impressionou. Beleza é fator importante, assim como o cosmopolitismo é um valor (para mim). Em Florença tínhamos ambos.
Precisávamos também de alguma experiência em cidade “pequena”. Moramos sempre em metrópoles caóticas (Belo Horizonte, São Paulo e Nova York). Viemos para Florença em 2016. Era só um sabático, mas decidimos ficar.
GATOS
A decisão de vir para a Itália ocorreu em junho de 2016. Dos nossos três gatos, que estiveram conosco desde bebês, restara a Filó, já velha (13 anos de idade) e com sérios problemas renais, como a maioria dos gatos idosos. O procedimento para obter o “passaporte” dela durou quatro meses.
Mas lá estava ela no avião da Alitalia conosco, assustada, fechada em si mesma. Entre Guarulhos e Roma, hidratei-a usando uma seringa, dentro do banheiro do avião. Uma movimentação meio tensa e, agora entendo, muito imprudente.

Em Roma (16/10/16), no hotel, Filò fez xixi (e comeu) pela primeira vez em 24 horas. Chegamos em Florença de trem no dia seguinte. Havíamos alugado por trinta dias um apartamento barato (via Airbnb) em Scandicci, onde a gente chegava fácil de metrô a partir da estação central de Florença. Scandicci está para Florença como Contagem para Belo Horizonte (risos).
A jornada estava apenas começando, mas não faltavam motivos para brindar. E brindamos com ênfase. O próximo desafio era alugar um apto no centro histórico de Florença. Isso foi bem mais complicado do que imaginávamos.
APARTAMENTO (1)
Em 2016, quando chegamos na Itália, as chamadas Città d’Arte italianas estavam vivendo o boom do fenômeno Airbnb. No centro histórico, onde a gente queria morar (onde moramos por cinco anos), nenhum proprietário estava disposto a fazer contrato longo de aluguel.
Praticamente 90% dos imóveis disponíveis tinham sido convertidos em “hotéis”, e os preços atingiram níveis insanos. Italianos fugiam do centro, por causa dos custos e das multidões de turistas que aumentavam a cada ano.
Vimos uns cinquenta imóveis ao longo de um mês. No geral, eram um lixo: mal localizados, mal equipados, destruídos e/ou cafonas. De todos esses, três nos pareceram interessantes. Dois eram impagáveis. Um parecia perfeito, mas…
Um casal (italiano) visitou o imóvel no mesmo horário que nós. E gostaram. Aí não teve jeito. Eles tinham holerites para comprovar renda. Nós, não. Na época, eu sequer falava italiano. Tratava tudo em inglês. Na falta de comunicação verbal (somente as gerações mais jovens de italianos falam e entendem bem o inglês), eu fazia mímicas, desenhava, etc.
APARTAMENTO (2)
Diante da dificuldade de encontrar um imóvel que valesse a pena, fomos pouco a pouco reduzindo a nossa lista de exigências. Quatro itens, porén, eram imprescindíveis/inegociáveis: boa localização, silêncio, luz natural e poder fixar residência (oficialmente). Este quarto item era fundamental para tirar documentos, abrir conta bancária, ter acesso ao sistema público de saúde, enfim, para usufruir do fato de eu ter cidadania italiana (meu avô materno era italiano, como eu disse).
Bateu desespero. Nosso orçamento não era folgado. Estávamos temporariamente em um flat caríssimo (já no centro) e colecionando decepções e fracassos com corretores super enrolados. Resumindo: sem residência fixa, a vida prática ficava completamente emperrada.

Mas fomos conhecendo pessoas e aprendendo a lidar com a cultura italiana (hiper burocrática). Por fim, conseguimos um apto velho, feio, mas não tão caro. Tinha o principal: silencio, iluminação natural e ficava no coração de um bairro cult (Santo Spirito). Da janela víamos a Basílica di Santo Spirito e o nosso pequeno terrazzino florido (foto acima).
Ufa! Moramos nesse três anos e meio. Foi maravilhoso. A gente passava os fins de tarde e as noites no terraço bebendo vinho ou prosecco, olhando as estrelas, a lua e conversando sobre nossa jornada até aquele dia. A gente continuou morando no centro, mas num apto mais moderno, que havia sido reformado há pouco.
Eu havia internalizado (finalmente) que beleza também é importante na vida. Faz bem ao meus olhos e à alma. Florença é linda, em comparação com São Paulo e Belo Horizonte. E nossa qualidade de vida lá foi muito alta. Em 2017, consegui um trabalho como “greeter“, o que ajudou criou novos intercâmbios culturais para mim, além de me ajudar a pagar as contas com mais folga.
Com a pandemia e tudo o que decorreu daqueles 18 meses horríveis, decidi me afastar de cidades grandes. Em 2021, me mudei para as montanhas da Província de Modena, Emilia Romagna. Estou a 5 km da vila mais próxima (Frassinoro), que tem 400 residentes fixos. Em breve ee conto essa fantástica (e inusitada) experiência. [Este artigo foi atualizado em junho de 2022.]
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