Vejam que paradoxo: nos momentos em que minha vida estava de fato ruim, lutei como um autêntico guerreiro; mas nos momentos em que tudo parecia andar (e realmente andava) bem, comecei a reclamar do que faltava e do que não. Isso não me torna um indivíduo singular entre os demais da espécie à qual pertenço – aquela à qual vocês também pertencem. Ao contrário. E foi exatamente a nociva trivialidade do ato de reclamar que me levou a pensar a respeito.
PARÊNTESE
Refletir tem sido um das minhas atividades favoritas em Florença. A cidade tem muitos jardins, alguns grandes. O Giardino di Boboli é um harmônico conjunto de jardins atrás do Palazzo Pitti. É libertador circular por ali sem um objetivo – antigamente, não ter objetivo era impensável para um homem prático como eu. Não por acaso os fiorentinos usam a expressão “arquitetura verde” para elogiar o Boboli. Impressionante o senso de geometria e proporção das alamedas, lagos, cercas vivas e ornamentos.
Um ótimo lugar para manter o celular desligado, mas não a mente. Apesar da minha força realizadora, sempre gostei de pensar sobre a vida: o feito e o não feito, o sucesso e o fracasso, as fruições e os bloqueios. Enfrento crises existenciais e financeiras desde que me entendo por gente. As crises mais difíceis tinham como pano de fundo uma pergunta aparentemente tola, que a gente normalmente não se faz: “Afinal, você está reclamando do quê?”.
Fecho o parêntese.
MAINSTREAM
Certa vez, um amigo meu reclamou tanto da sua (boa) vida para mim ao telefone que eu próprio reclamei com ele pelo fato de ele estar reclamando tanto. E não é que ele ficou ofendido? Mais: me veio com esta: “Qual é!? A gente tem mais é que reclamar sim. Hoje em dia reclamar é a única coisa pela qual a gente não tem que pagar!”. Decorreu um silêncio constrangedor. Reclamador gabaritado, fiquei confuso, ou melhor, chocado.
No Boboli, então, sozinho como ninguém, pensei no quanto nós, jornalistas, tendemos a ser opiniáticos e judicativos. Operamos dento do mainstream, dentro do sistema dominante. Mesmo quando emitimos opiniões de modo não convencional, essas opiniões são sempre sobre algum assunto de algum modo conectado ao mainstream. De tanto lidar com as mazelas do mundo, com o tempo começamos a não perceber nuances. As impurezas do mundo se tornam um imenso borrão.
ANTI-ATITUDE
Queria chegar no seguinte ponto: ser jornalista exacerbou meu lado reclamador, e isto não me trouxe benefícios. Porque enquanto estamos reclamando, as tais peças que tão convictamente identificamos como “fora de lugar” permanecem exatamente onde acreditamos que estão: fora de lugar. Isso, por um ponto de vista individual. Já no coletivo eu diria, por exemplo, que os italianos são tão reclamadores quanto nós, brasileiros.
Hoje entendo que reclamar indiscriminadamente é uma espécie de anti-atitude. [Se sua queixa é específica, talvez você possa descarregá-la em sites como o Reclame Aqui (risos).] No fundo, meu amigo tem certa razão: reclamar a torto e a direito é grátis porque faz sentido para o reclamador, enquanto reclama. Mas não tem sentido nenhum, de fato. Esse meu amigo é inteligente e domina a linguagem oral, o que o torna, para muita gente (exceto para mim), um reclamador super convincente.
FUGIR DOS FATOS
A insatisfação generalizada mora em nosso pensamento, e pode ou não se transformar em discurso. Seja como for, não traz à tona nada além de cegueira. Você perde a (ou não estimula em você a) capacidade de distinguir as infinitas possibilidades que existem entre dois pontos extremos. Dito de outro modo: a gente passa a focar somente os pontos extremos. Quando me sentia satisfeito e mesmo assim reclamava muito, eu estava, na verdade, fugindo dos fatos.
Nada mais antijornalístico, aliás, que fugir dos fatos… Quais fatos? No Boboli, mirando por um ângulo inusitado a torre da Basílica di Santo Spirito, que fica a alguns metros da minha casa, lá embaixo, ao longe, captei a mensagem em dois tópicos:
- O tempo está sempre contra mim, pois vou morrer. Cada vez que o ponteiro do relógio se move para “a frente”, ele está me dizendo assim: menos um, menos, menos um, menos um. [O cineasta Mario Peixoto (1908-1992) diz isso ao Walter Salles no documentário “Onde a Terra Acaba”.]
- Não tenho certeza de nenhuma outra possibilidade além dessa do item anterior.
IMPRECISÃO
Os judicativos devem estar inquietos: “Ah, mas isso é tão óbvio!”. Ou: “O senhor não leu Schopenhauer no original!”. Bem, se os opiniáticos assim disserem, hummm, sabem o que vai acontecer? Concordarei plenamente. É óbvio mesmo e não li Schopenhauer no original (gargalhadas). Não importa se você e eu temos razão de estarmos reclamando. Interessa que, durante as nossas reclamações, os contra-argumentos óbvios, imutáveis e onipresentes ficam desfocados, todos; e entra em cena a… Idealização.
Daí, voltando do Boboli para casa, excitado como se tivesse descoberto a roda, aliviado como se tivesse coçado a coceira e cheio de certezas como um genuíno idiota, desatei a imaginar “quanta coisa podia ter feito enquanto fiquei reclamando”. Incríveis as possibilidades que me ocorriam. Mas em segundos me dei conta do óbvio (de novo): o “e se” é imaginação pura. Mais: denota lamentação. Enfim, além de eliminar as chances de um diálogo proveitoso, reclamar (em suas mais variadas configurações) é sempre algo muito, muito impreciso.
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