Duas forças antagônicas estavam me atazanando. A força nº 1 me dizia assim: “Você não tem obrigação de escrever toda semana aqui no “Repensando Atitudes”. Portanto, relaxe. Escreva quando puder”. E a força nº 2 repetia, repetia, repetia incessantemente o seguinte: “Coloque a sua bunda naquela cadeira agora e escreva alguma coisa para esta semana ou você não conseguirá se olhar no espelho amanhã.
Um duelo ridículo, evidentemente, mas insolúvel. Que diabo era aquilo? Culpa. Ou melhor: sentimento de culpa. Bingo! Eu já tinha um assunto sobre o qual escrever.
O tema sempre me interessou porque o sentimento de culpa é traiçoeiro. Ele nos coloca dentro de um círculo vicioso desorientador. E não importa o que você tenha feito ou deixado de fazer; não importa o que você tenta fazer para atenuar. Você está consciente de que se sentir culpado não resolve nada (ao contrário), mas o maldito sentimento de culpa fica ali, a destruir o que a gente tem de melhor: a possibilidade de ter prazer.
DE ONDE VEM?
O fato é que, assim como sentimos prazer e dor, sentimos culpa, e nunca nos livraremos (definitivamente) desse sentimento. [Os psicopatas não o têm nem mesmo quando violam o Código Penal, mas, bem, os psicopatas são um caso à parte.] De onde vem o sentimento de culpa? Da convicção quase sempre injustificada de estarmos causando danos (materiais ou psicológicos) a alguém.
Uma vez instalada no seu HDMental, a culpa conduzirá todas as suas ações (assim como as suas inações) e a sua conclusão será sempre a mesma: “Tentei, tentei, tentei resolver mas continuo me sentindo… Culpado”. O sentimento de culpa é traiçoeiro, cíclico e, segundo os entendidos, se retroalimenta pelo “eu devia…”:
- devia ter ido;
- devia ter ficado;
- devia ter telefonado;
- devia ser mais generoso/paciente/etc.;
- devia ir ao médico;
- devia perder peso;
- devia me sentir menos culpado…
E por aí vai. Na prática, esse “eu devia…” desvela o desejo de conquistar/manter a aprovação dos outros em relação a quem somos ou o desejo de conquistar/manter uma autoaprovação. O problema é que enquanto nos sentimos culpados e dizendo que devíamos ter feito isto ou aquilo nós paramos de viver a nossa vida segundo nossas próprias orientações e começamos a viver em função do “objeto causador” da culpa.
MOTIVOS ÓBVIOS
A gente se sente culpado por milhares de coisas, mas, resumidamente, por:
- alguma coisa que fizemos;
- alguma coisa que não fizemos, mas queríamos ter feito;
- alguma coisa que acreditamos (não) ter feito;
- não termos ajudado alguém o suficiente;
- acreditarmos que somos melhores do que Fulano(a).
O medo da punição foi internalizado através dos nossos convívios com pessoas que têm (ou tiveram) um papel significativo em nossas vidas. Não necessariamente pai e mãe. Ou não somente pai e mãe. O sentimento de culpa existe – e é horrível, quando excessivo – por dois motivos tão óbvios quanto preteridos: 1) Nenhuma forma de amor é incondicional; 2) A gente tem dificuldade em aceitar o item anterior.
Em relacionamentos aos quais damos importância temos sempre que fazer alguma coisa pelo outro para que ele/ela nos “ame”. Se os desejos do outro (ou o que pensamos serem os desejos do outro) não forem atendidos, o amor e a aprovação não se realizam e você fica mal. Então, sentir-se culpado nada mais é do que arrastar consigo o peso da bagagem emocional do outro, como se já não bastasse o peso da sua própria bagagem.
RUMINAÇÕES
As consequências dos dilemas e contradições relacionados à culpa podem causar vergonha também. E ambos (contradição e vergonha) em geral nos imobilizam; ambos levam a ruminações poderosamente destrutivas. Estudos mostram que o ressentimento (a ruminação) é um dos pilares das depressões (clinicamente falando). E a gente não rumina somente sobre águas passadas ou o sexo dos anjos. Ruminamos também sobre o que nunca – nunca – aconteceu de fato.
E como enfrentamos as culpas? Assim: evitando tomar a atitude pretendida ou fazendo esforços para manter certa estabilidade nos relacionamentos; pedindo desculpas, por exemplo, ou tentando expiar o mal que acreditamos ter causado. Na ficção, um exemplo espetacular de abordagem do tema do sentimento de culpa é o romance “Reparação”, de Ian McEwan. A personagem-narradora do livro tenta expiar a sua culpa por ter tomado uma atitude impensada que destruiu a vida de várias pessoas irreversivelmente.
VIDA SEM CULPA
Você, tanto quanto eu, sabe, por experiência própria ou por assimilação, que o sentimento de culpa produz estresse e desatenção. Ok. Agora tente imaginar como seria o mundo se ninguém – ninguém – sentisse culpa. Tentei. O meu parecer: acho que a vida sem o sentimento de culpa poderia ser até mais insuportável do que o sentimento de culpa em si. Primeiro: não haveria censuras nem meios-termos. Qualquer um poderia chegar para você e, em vez de dizer falsamente “você fica muito bem de calça jeans”, dizer-lhe “a verdade”: “Você tem um corpo tão horrível que nenhuma roupa fica bem em você”.
Qualquer um poderia chegar para você e lhe dizer, na lata (hummm, que delícia!): “Você é um(a) imbecil narcisista, incompetente e medíocre”. Já pensou? Seria a barbárie (risos). Ou você acha que as pessoas atingidas por esses golpes certeiros de franqueza iam deixar por menos? Infelizmente, assim como o certo não existe sem o errado e a verdade não existe sem a mentira, não podemos existir sem sentimentos de culpa. E por quê? Ora, porque o sentimento de culpa ajuda a proteger, manter e aperfeiçoar os nossos relacionamentos.
REVIRE-SE
E nem todas as funções do sentimento de culpa são horripilantes ou nocivas. Quando relacionado ao altruísmo e à empatia, por exemplo, é construtivo. Se o sentimento de culpa não existisse, Cristiano Ronaldo e Bill Gates não doariam quantias generosas para promover o bem comum – sim, a filantropia decorre do sentimento de culpa, claro!
Então, embora esse sentimento não possa ser banido da nossa existência, embora ele torne a nossa vida mais difícil (reduz a concentração, o prazer e a criatividade) precisamos tentar minimizá-lo. Como? Ah, você queria receitas, né? Sorry. Revire aí o seu interior até encontrar a sua própria capital (risos).
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