Você já deve ter ouvido algo assim: “Existem dois tipos de pessoa; as que acreditam que existem dois tipos de pessoa e as que não acreditam”. Uma das ironias dessa anedota reside na nossa mania de querer dividir por dois e polarizar, na esperança de que essa atitude facilite a nossa vida. No dia a dia, porém, percebemos que as dicotomias acabam gerando mais frustração do que alívio. Por quê? Porque as dicotomias alimentam simplificações falsas. Vejamos.
CONCEITO E CONTEXTO
Dicotomia é a subdivisão de um conceito em dois opostos que esgotam completamente a extensão. Você imediatamente associará essa definição ao momento político (do Brasil e de outros países), com o radicalismo de extrema direita conquistando cada vez mais eleitores e atiçando os radicalismos de esquerda. Está tudo tão polarizado pelos extremos que você – pessoa equilibrada, que não nutre ódios – acaba perdendo a vontade de dialogar/opinar, o que é uma pena.
Mas quando falo de polarização não me refiro somente a fanatismos políticos, religiosos e futebolísticos. O extremismo é um equívoco mental causado por um modo de raciocinar bem específico. É uma Distorção Cognitiva, na verdade, e tem nome: Pensamento Polarizado (elaborar a realidade binariamente, privando-a das variações intermediárias). Pessoas com esse tipo de funcionamento mental buscam simplificar/generalizar situações complexas para se vitimizarem ou se sentirem poderosas (essas duas coisas, no fim das contas, acabam sendo a mesma coisa).
SAÚDE, AMOR, PRAZER
Aplicar a lógica do tudo-ou-nada, certo-ou-errado, bom-ou-mau, oito-ou-oitenta, etc. no dia a dia é como apontar uma flecha para um alvo a apenas dois metros de distância e acabar acertando-a no próprio pé. Ver as coisas apenas “de uma maneira ou de outra” pode causar muitas dificuldades nos relacionamentos também. Mais: a polarização corrói a saúde, o amor e o prazer de viver.
Você tem um compromisso importante hoje à noite e contava que sua mãe te emprestaria o carro dela, mas ela tem outros planos. Ansioso, você liga para o seu melhor amigo, que tampouco pode te ajudar. Daí você diz ao amigo: “Se você realmente gostasse de mim, me faria esse favor”. Percebeu? É tudo ou nada. É o carro ou a nossa amizade.
AS “BIPOLARIDADES”
O pensamento polarizado opera com a ideia de que os polos não devem/podem coexistir. Ao contrário, um tem de eliminar o outro. Isso gera negativismos e positivismos irreais.
Negativismos: tudo dá errado pra mim. Ninguém me entende. Foi uma perda de tempo total. Eu nunca soube o que fazer. Sempre fico com o pior… Positivismos: ele/ela é o máximo. Meu emprego é tudo de bom. Nada me atinge. A vida é sempre maravilhosa. Tudo o que faço é por amor…
Essas leituras extremadas impedem a pessoa de compreender mais profundamente as situações que está vivendo (tanto as boas quanto as más) e bloqueiam a visualização das “lições” que poderiam ser extraídas de cada experiência.
O QUE FAZER?
Toda situação é complexa em si porque contém um número incalculável de variáveis e perspectivas, mas querer construir uma realidade a partir de um bloco rigorosamente cortado em dois, sem pontos de conexão com o Todo, sem nuances, sem prós e contras, sem balanceamentos, leva a crenças errôneas (medos irracionais, tristeza infundada, astral muito oscilante, etc.).
O que se pode fazer já a partir de agora? Primeiro, comece a prestar atenção aos momentos em que o seu “raciocínio dicotômico” arrasta todas as interpretações até os extremos. Segundo, abra espaço para reflexões mais articuladas (não binárias, não categóricas). Terceiro, lembre-se que, para cada juízo, existe um juízo contrário, mas também um terceiro juízo, que compreende parte do primeiro e do segundo – ou mesmo um quarto e/ou um quinto juízo que podem te ajudar a enxergar tonalidades novas.
SUCESSO-OU-FRACASSO
Suponhamos que você tenha estabelecido para si mesmo a meta de concluir dez projetos até o final do mês. Se você se sentir derrotado por ter concluído somente oito projetos no mesmo intervalo de tempo, isso pode ser um sinal de que o seu pensamento (condicionado pelo tudo-ou-nada) está trabalhando contra você. O objetivo era dez mas você “só” atingiu oito. Isso realmente significa que você fracassou?
Formule perguntas racionais, sem subterfúgios, e observe como os outros ao seu redor reagem à mesma situação. Uma colega de equipe sua acha que oito em dez significa que a meta original era alta demais e o mais sensato agora é desacelerar um pouco. Outro colega está seguro de ter dado o máximo de si e, portanto, oito em dez é um resultado excepcional, dadas as circunstâncias.
Outra dica: evite compartilhar suas interpretações com pessoas que também tendem a exagerar tudo, para o bem ou para o mal. E entenda que a permanente oscilação entre a ideia de sucesso total ou fracasso total não produz emoções favoráveis a você. Ao contrário, o extremismo interpretativo causa estresse, raiva e baixa autoestima.
SÍNTESES E PAREDES
Toda tese possui mesmo a sua antítese, é fato, mas o mais importante é ser capaz de sintetizar de maneira claramente a essência das possibilidades que se apresentam (de preferência, que o número de possibilidades seja igual ou ou superior a três). Então, evite enclausurar sentimentos, necessidades e atitudes em categorias/classificações destemperadas. A quem interessa uma realidade tingida com apenas duas cores?
Pensando no social me veio à mente outro aspecto importante. Precisamos aceitar que no mundo atual as opiniões são (teoricamente) bem-vindas e também as suas podem se tornar públicas sempre que você quiser, mas isso não significa que a maioria das pessoas esteja interessada em garimpar convergências.
A expressão “falar às paredes” ganhou novos contornos nas últimas décadas, com o surgimento das redes sociais on-line. Sendo assim, lute para não polarizar os seus diálogos consigo mesmo (os seus diálogos internos) e procure relativizar o que os outros dizem sobre você.
Texto ponderado, denso e reflexivo. Penso que convida a baixarmos um pouco a nossa bola, com raciocínio moldado por mais tolerância e compreensão.
Olá, Reginaldo, obrigado. Precisamos elevar a serenidade e continuar incentivando firmemente o debate, não a polarização. Abço!
Ótimo texto, professor. Até estava pensando sobre isso esses dias, mas mesmo depois de ler o texto, eu não consigo cogitar em manter amizades com bolsonaristas atuantes. Até “tolero” os que votaram mas que “estão nem aí”, porém, vai além da minha racionalidade me sentir bem com bolsonaristas. Sei que a esquerda está cheia de problemas, tento entender as razões deles, mas não dá…. Não tolero a intolerância… Mesmo que isso me torne um intolerante.. Intolerante contra a intolerância? Enfim, gostei do texto, mas para mim, só serve quando não ha o nome “Bolsonaro” no meio… Abraço!
Olá, Eduardo, obrigado pelo feedback.
Eu te entendo. “Tolerar a intolerância dos outros” é difícil também para mim, claro. Recebi uma educação humanista/solidária, e agora, aos 54 anos, percebo uma intransigente disseminação de ódios e ideias retrógradas (que eu pensava estivessem extintas do imaginário popular). Sofro muito com isso. Me dá uma sensação de “derrota geracional”. Minha geração lutou pela democracia plena e pela redução das desigualdades. E caímos nesse abismo… O momento político do Brasil é mesmo lamentável, e uma boa parte das pessoas, no geral, me parecem “surtadas”, sem noção, mas, apesar de tudo, me recuso a defender o “olho por olho, dente por dente”. Não nos levaria a lugar nenhum, na minha modesta opinião. Precisamos resgatar valores como diversidade, igualdade e fraternidade. Encontraremos um modo de canalizar/verbalizar isso à maioria dos brasileiros. Abraço, Sergio