Em fevereiro de 2024, fiz uma prostatectomia, cirurgia de remoção da próstata. O câncer de próstata foi o primeiro sinal concreto de finitude que enfrentei. Mais que isso, a experiência me ajudou a entender que a perda da próstata afeta o ideal masculino de diversas formas.

O câncer de próstata é tão comum em homens quanto o câncer de mama em mulheres. Os prognósticos sempre foram favoráveis a mim. Racionalmente falando (informação é poder, diga-se), eu sabia que a probabilidade de eu morrer disso, tendo apenas 58 anos de idade, na época, era bem próxima de zero. De qualquer forma, tive que reduzir os ritmos e as ambições, e entrei em compasso de espera.
ATITUDE MENTAL
Eu era marinheiro de primeira viagem. Nunca havia sido internado nem operado. Logo depois da biópsia, tive dificuldade de lidar com a fatalidade da notícia. Durante toda a minha vida adulta, na grande maioria das vezes, tive o privilégio de poder decidir qual rumo tomar. Diante de um câncer, porém, não há muito que se possa fazer com as próprias mãos.
Como lidei com o problema? Procurei me manter distante da alienação, do catastrofismo e da autopiedade. Fugi de elucubrações do tipo “por que diabos isso foi acontecer com um cara legal como eu?” ou “o que será de mim daqui a dois, cinco, dez anos?”. Esse tipo de emoção geraria ainda mais ansiedade e dificultaria a aceitação. Importante lembrar que aceitação é diferente de conformismo.
DR. GOOGLE
Resisti também à tentação de buscar amparo no dr. Google. Pesquisei apenas o suficiente para me situar cientificamente. A cada dia, eu tentava aprender uma informação nova e relevante, evitando falsas ilusões. Positivismos tolos/tóxicos nem passaram pela minha cabeça. Uma dose de medo e insegurança era necessária e até mesmo recomendável. Em vez de afundar na fadiga e no negativismo, dei o melhor de mim para construir dias agradáveis, que me trouxessem prazer e leveza.
O mais interessante, porém, foi notar que na internet praticamente não há depoimentos de homens sobre suas experiências com o câncer de próstata. Muito menos com a prostatectomia. Busquei então relatos de mulheres sobre o enfrentamento da mastectomia (remoção do seio), por exemplo. Havia milhares. As mulheres têm mais facilidade de se abrir sobre os problemas que estão enfrentando? Historicamente, sim. As mulheres se cuidam mais e lidam melhor com emoções do que os homens.
EDUCAÇÃO E CONTEXTO
Consegui encontrar tempo para refletir sobre como nós, homens, chegamos aonde chegamos. Minha geração foi educada para esconder emoções, principalmente as negativas (raiva, medo, ansiedade, depressão, estresse, etc.). Para homens previsíveis, vulnerabilidade é fraqueza, fraqueza é uma vergonha e as vergonhas têm de ficar escondidas no fundo do porão.
Desde sempre, a cultura ocidental é muito injusta com mulheres, indivíduos LGTBQIA+ e pobres em geral (independentemente da cor da pele), que sofrem preconceitos e violências diariamente. No atual contexto de valorização da feminilidade e de autoafirmação das minorias, os héteros se tornaram vilões. Héteros brancos, como eu, pior ainda. Filmes, romances, séries e mídias tendem a nos retratar hoje em dia como opressores, abusadores, imaturos, imprestáveis e fracotes que não suportam uma dorzinha.

FALAR DE SI
O homem tipicamente masculino não fala de si. Fala de política, de economia, de trabalho, de máquinas e, principalmente, de mulheres e competições. Mas não se abre sobre seus verdadeiros sentimentos. Conversando com minhas amigas, descobri que eu era um raro exemplar de homem que expõe suas inseguranças. E pensar que, quando recebi o diagnóstico de câncer, eu sequer sabia para que serve a próstata, glândula que faz parte do meu corpo, imagine.
Perguntei a vários homens da minha geração qual a função da próstata. Nenhum soube responder. Incrível. Os homens produziram as leis vigentes (redigidas para favorecer a eles mesmos, especialmente os brancos) e se autoatribuíram poderes superiores, mas desconhecem o próprio corpo. Faz sentido. O capitalismo – inventado por homens também – sempre nos tratou como mão-de-obra. Quanto mais ignorantes em relação a nós mesmos, melhor para a sistema.
MASCULINIDADE
A remoção da próstata toca necessariamente no assunto mais inviolável do superficial universo masculino: a “masculinidade” (conceito cada vez mais difícil de definir). Um dos efeitos colaterais da remoção da próstata é a perda da capacidade de ereção e do autocontrole sobre o ato de urinar. E sem próstata não há ejaculação – consequentemente, nada de esperma ou espermatozoides.
Tentei imaginar o impacto dessas limitações na mente de homens “pintocêntricos” (não é o meu caso, felizmente), identificados com ideais de virilidade, fertilidade e “dureza” eternos (risos). Se não está sendo fácil para mim, deve ser ainda mais difícil para quem tem uma visão inflexível do que significa ser homem. O fato é que, um ano depois da cirurgia, ainda estou me adaptando às mudanças.
+ DOIS TEXTOS
Leia os outros textos sobre a minha experiência com a “prostatectomia radical”:
Ah meu caro Vilas, você, como sempre, na direção oposta: a manada vai para um lado e você pro outro. Coragem é o que nunca te faltou!
Extremamente correto. Essas são minhas palavras sobre o texto. Força primo
Bom dia! Sergio Villas Boas, tens aqui uma nova seguidora. Quanta grandiosidade nesse texto. Gratidão por compartilhar. Me chamo Cristina.
Sérgio achei seu texto surpreendente e inédito.
Dificilmente homens relatam seus dramas com relação a saúde.
Você foi impactado mas tem o dom da escrita que é altamente terapêutico.
Imagino que ele se mostra como um novo potencial para uma nova fase da vida onde repensar atitudes , mais uma vez, se mostra como fato real , as mudanças são as únicas certezas que temos no decorrer de nossa existência.