Pessoas que se consideram inadequadas e que convivem diariamente com a sensação de não serem suficientemente capazes são como automóveis girando pelo mundo com o freio de mão puxado. 1º) Suas inseguranças se baseiam em prejulgamentos: “tenho menos, sou menor, não sirvo, não estou à altura”. Há os que atravessam a vida tentando identificar as próprias capacidades. Outros se rendem aos seus autoenganos. 2º) As inseguranças alimentam medos (e vice-versa). Medo de expor-se, de desagradar, de conflitar. Medo da rejeição, da inadaptação, enfim, da “derrota”. Esses temores são causados em grande parte pela intensa cobrança familiar-social para que sejamos infalíveis, equilibrados, admirados, satisfeitos e gratos. [Detalhe importante: o foco deste artigo é a insegurança infundada (íntima), não aquela ancorada em dados empíricos.]
EPIDEMIA DE INSEGURANÇA
Os processos de trabalho se tornaram muito velozes, graças às novas tecnologias e, no plano pessoal, temos que lidar hoje com uma extenuante cobrança por performance excelente em tudo. Mais que isso, diariamente acessamos redes sociais e comparamos nossas vidas imperfeitas com as vidas “perfeitas” de desconhecidos. Isso amplia o coro de vozes judicativas “contra” nós e potencializa a sensação de não estarmos à altura dos padrões de eficiência e satisfação – geralmente irrealistas – impostos por nossa cultura (família e sociedade) e que adotamos, consciente ou inconscientemente, talvez por desconhecermos outras alternativas.
A insegurança infundada não brota do nada. Trata-se de um processo mental individual provocado por uma cultura tóxica (dentro ou fora de casa). O fato é que, em algum momento, de alguma forma, alguém inculcou em você essa tua sensação de insuficiência. Quem? Pais, parentes, professores, companheiros(as), chefes, colegas, cada caso é um caso. Tua autoestima pode ter sido minada desde criança; ou você sofreu abusos; ou foi vítima de discriminação na escola, no trabalho ou numa relação amorosa. O “algo” que te atingiu profundamente (tempos atrás) é o que continua regendo a tua insegurança neste exato momento.
VOZES (INTERNAS E EXTERNAS)
O medo da insuficiência pode ser visto em duas dimensões: 1ª) Interior: atinge os que tomam (ou não tomam) decisões de acordo com o crítico interno, aquela voz implacável dentro da mente, que persegue e condiciona; 2ª) Exterior: atinge os que têm horror de receber críticas de pessoas específicas (ou de qualquer pessoa). Essas duas dimensões se confundem. O efeito, no entanto, é o mesmo: vereditos antecipados. Especialistas afirmam que é importante identificar o “juiz” predominante (se interno ou externo) para endereçar as inseguranças e definir a terapia mais adequada.
Enquanto o juiz interno é unívoco, os juízes externos são multivocais. Teme-se o parecer de diretores e supervisores, por exemplo, mas não o que pensam os colegas. Teme-se o julgamento de pessoas conhecidas ou apenas de pessoas estranhas. Há quem se sinta avaliado/observado seja onde for. [E existem pessoas menos judicativas consigo mesmas por terem pouco ou nenhum estímulo à auto-observação. Pesquisas indicam que autoconhecimento elevado e atividade intelectual intensa aumentam as chances de transtornos mentais.] Quanto ao conteúdo dos julgamentos temidos (reais ou imaginários), ele é variado. Conheço pessoas que se fragilizam com a ideia de serem vistas como desinformadas ou superficiais; e outras que se perdem antevendo valorações estéticas (feio, gordo, patético) e de personalidade (distraído, frágil, sentimental).
Não é porque certas coisas são difíceis que nós não ousamos. É justamente porque não ousamos que tais coisas são difíceis
Sêneca (4 a.C.-65)
O LADO DE DENTRO
Enquanto alguns se deixam transtornar por uma possibilidade, ainda que remota, outros tomam os prejulgamentos que fazem de si mesmos como verdade absoluta. Em qualquer caso, estão em jogo o medo de se expor, o medo de um conflito ou ambos. Os fantasmas da rejeição e do abandono, no caso, estão a rondar, sempre. Psicoterapeutas de tendências diversas afirmam que os indivíduos submetidos à tal voz interior (o “inimigo interior”) tendem a se preocupar com as palavras que usam e com o visual; e são competentes, bem-sucedidos e admirados. Mas sentem-se insatisfatórios e preteridos. Síndrome do Impostor? Em alguns casos, sim.
Nem todo mundo tem consciência de quem é o poderoso inquisidor por trás de seus medos e fobias. Sentem-se julgadas por uma entidade genérica, oculta e inominável. De modo geral, são pessoas que acreditam que suas dificuldades (falar em público, por exemplo) são específicas e por isso devem ser resolvidas de maneira específica (fazer um curso para destravar). Quando essa tentativa de reparo não resolve, buscam ajuda psicológica. Não raro descobrem-se prisioneiras de uma insegurança generalizada, que as leva a organizar suas vidas de modo a nunca precisarem se expor. Com o tempo, porém, esses mecanismos de defesa vão se tornando sempre mais difíceis de praticar.
AUTOENGANOS
As inseguranças infundadas são ilusões de ótica. Pense em como acessamos a realidade. Nosso acesso a ela é indireto, porque está mediado por nossas experiências e percepções. Tendemos a observar/interpretar os acontecimentos com os recursos usuais: nossas crenças de sempre e as estratégias que funcionaram no passado. Não há como escapar disso. Nossa mente funciona assim. Também não é possível evitar completamente os autoenganos (afirmações falsas que fazemos a nosso respeito para não termos que enfrentar verdades dolorosas). Os autoenganos ajudam a formar a autoestima, e autoestima tem a ver com valor, e o valor que nos damos é componente decisivo para a saúde mental. Então, minimize os autoenganos para não sofrer suas consequências.
Conhecer as causas de comportamentos nocivos persistentes não garante que você encontrará solução para cada um deles. Não podemos corrigir o passado. O que podemos fazer é intervir nas negativas consequências que o passado está provocando hoje. Até porque, com o tempo, o que gerou o script (o processo de formação do problema) lá atrás vai deixando de ter relação direta com as tuas dificuldades atuais. Mas é como se reiterássemos continuamente um roteiro redundante, que limita nosso desenvolvimento individual. São armadilhas psíquicas, na verdade. A mais comum gira em torno de subestimar ou superestimar pessoas, coisas, acontecimentos e como nos vemos.
+ ARMADILHAS PSÍQUICAS
Outra armadilha é o “sinto, portanto é”. Você atribui qualidades a alguém ou a alguma coisa com base em sensações, não em verificação empírica. É como se estivesse usando óculos com lentes deformadoras, que te forçam a dar mais atenção aos dados que confirmam que você deve (ou não deve) pensar/fazer determinada coisa (especulação pura). O “sinto, portanto é” gera profecias autorrealizáveis (assumir como verdadeira uma previsão falsa, agir como se ela fosse verdadeira e assim concretizá-la).
Digamos que você não se sinta capaz de executar uma tarefa. Fará o possível para evitá-la. O resultado será mais ou menos previsível: além de ver confirmada a tua incapacidade, perderá uma boa chance de aprender algo novo. O que acontece depois? Você se sente ainda menos capaz. Outro exemplo? Você se acha pouco atraente (fisicamente). Em vez de agir para se sentir mais atraente, prefere a invisibilidade, escolhendo sempre um visual discreto e isolando-se. De novo a profecia autorrealizável: você confirma para si que não é atraente e reforça o autoengano original.
BUMERANGUES (1)
As armadilhas psíquicas também podem envolver ações (conscientes ou não). Reiteradas no tempo, essas ações contribuem para a construção de sistemas de vida rígidos, que criam um efeito bumerangue: voltam-se contra nós. Entre as tantas ações imediatas de combate à insegurança, a mais comum é o evitamento (evitar em vez de considerar/aceitar). Você obtém alívio num primeiro momento, mas no médio prazo as coisas podem piorar. Logo você se pega evitando mais do que interagindo, até concluir que desperdiçou possibilidades interessantes (arrepender-se). A repetição do evitamento, aliás, cristaliza a insegurança. Daí a querer evitar o inevitável é um passo.
Outra estratégia com efeito bumerangue é o controle excessivo. Querer ter certo controle sobre a vida é tão humano quanto inato. Na verdade, estamos falando de uma ilusão de controle, que, em si mesma, pode até ser saudável. Acreditar que tem algum controle nos ajuda, por exemplo, a traçar planos e definir objetivos. O problema é que o controle anda junto com o perfeccionismo. Então, quando a necessidade de controlar se transforma numa busca incontrolável por perfeição, os efeitos são venenosos: 1) Teu perfeccionismo te obriga a manter um nível de excelência inatingível; e 2) A ênfase no controle conduz à sensação de descontrole, que é altamente destrutiva.
BUMERANGUES (2)
Defender-se preventivamente: quando a gente teme que os outros possam de alguma forma nos ferir ou criar problemas, a gente tenta deixar claro que estamos na defensiva. Até aí, tudo bem. Você ergue a guarda e impõe um distanciamento. Mas não vai ficar por isso mesmo (risos). Os outros também se defenderão de você, criando uma escalation de desconfiança e animosidade. Na prática, você consolida a confirmação de que “é mesmo imprescindível uma atitude defensiva minha, afinal, o mundo está repleto de potenciais inimigos” (este é o autoengano que gerou a atitude).
Crescer dói. E dá medo, insegurança. Mas é bom, bem bom.
Thalita Rebouças, escritora.
No entanto, a ação reiterada (bumerangue) mais deletéria é a renúncia. Quando a insegurança te leva a renunciar aos desafios e possíveis conquistas que a vida te propõe, você está confirmando a tua insegurança (e a atua incompetência) e tornando-a tão concreta quanto irrefutável. Você pode tentar se defender dizendo: “Prefiro assim e estou em paz com minha decisão”. Em tese, essa fala faz sentido se você tiver renunciado porque realmente o cargo, o relacionamento, a viagem de intercâmbio, etc. não te interessavam. O fato é que a renúncia, como as demais formas de evitamento, podem causar (ou agravar) as depressões e as ansiedades.
AS REJEIÇÕES
O medo da rejeição é uma epidemia sobretudo entre os mais jovens, afirmam especialistas. No passado, a expressão “fobia escolar” (ou algo assim) era usada em referência às crianças que se recusavam a ir à escola por medo das provas. Aqui, na Europa, cada vez mais crianças fazem o possível para não comparecerem às aulas porque se sentem rejeitadas pelos colegas. Não por bullying (assédio moral), mas sim porque o próprio estudante se exclui do grupo como tentativa de solucionar sua inadaptação ou para não ter que enfrentar a rejeição. Essa linha de defesa funciona e dá alívio imediato. O estudante passa a ser mesmo ignorado, mas a reintegração fica mais difícil.
A expectativa de rejeição ou a rejeição real não afeta somente crianças e adolescentes, claro. Em adultos, são evidentes os temores: de encarar um eventual desprezo dos outros por você ter sido excluído em um processo seletivo ou porque você acha que não foi convincente na apresentação de um projeto aos teus clientes; temor de se expor em um relacionamento romântico; de ser excluído pelos colegas na pausa do café… Os exemplos são infinitos. De qualquer forma, estamos falando de juízes externos e de relacionamentos deteriorados. A causa está em uma deturpada relação eu-mundo, diferentemente da inadequação, baseada numa perturbadora relação eu-eu.
INADEQUAÇÕES
O sentimento de inadequação é crítico para quem o experimenta. Significa conviver diariamente com uma voz interior judicativa, severa e impiedosa. Para quem é afetado por essa tal voz o sucesso vale zero e o insucesso vale o dobro. O pressuposto, certamente equivocado, é o de que o único modo de ser adequado é atingindo a perfeição em tudo. Qualquer imperfeição é arrasadoramente frustrante. O mecanismo paradoxal é análogo àquele envolvido em outras inseguranças do tipo “não sou bom o suficiente”. Em função de suas supostas inadequações, essas pessoas têm de se esforçar além do “normal” para mostrarem a si mesmas o próprio valor. De modo geral, elas obtêm ótimos resultados, o que faz aumentar o nível de expectativa dos outros em relação a elas.
Porém, a motivação extra vira desincentivo. As novas responsabilidades conquistadas remeterão essas pessoas ao temor de catástrofes iminentes. O que fazem para mitigar isso? Tentam silenciar o crítico interno. Porém, quanto mais se esforçam para silenciá-lo, mais poder lhe dão. Submetem-se então a um estado de alerta constante, sempre à espera de que algo ruim aconteça. Enquanto isso, a infernal voz interior vai minando a (auto)confiança. Em sua versão “leve”, esse medo se traduz numa insegurança permanente, mas ela não impede a pessoa de seguir em frente. Em sua versão “patológica”, causa graves transtornos.
DIRETRIZES BÁSICAS
Se você se sente inexplicavelmente vacilante, o primeiro aspecto a assimilar (conforme afirmei no início do artigo) é o fato de que a insegurança infundada tem como causa principal a cultura da velocidade e da performance, que valoriza a quantidade em detrimento da qualidade da existência. Então, em vez de se preocupar com “onde você está errando”, pergunte-se: Quem escuto quando me ouço? Você pode estar reproduzindo ou se deixando levar pelos julgamentos negativos de uma pessoa (ou de um coro) muito presente hoje em tua vida; ou pode estar ainda suscetível aos estragos que um parente ou amigo fizeram em tua autoestima anos atrás. Dica: passe a voz judicativa interior da primeira para a terceira pessoa e distancie-se dela ao máximo.
A geração mais tecnologicamente equipada da história humana é aquela mais assombrada por sentimentos de insegurança e desamparo.
Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo
Conhecer os teus pontos fortes e fracos é fundamental também, mas isso exige que você se abra para o processo de aprendizado que vem junto com a conclusão (racional) de que você realmente não é autoeficaz em certas atividades. Outros pontos importantes: 1) A insegurança infundada se funda (risos) no medo do que “vai acontecer” (sempre algo ruim). Então, se você focar tuas ações mais no processo – tirando proveito da experiência – e menos no resultado, você reduzirá bastante a importância que você dá aos possíveis julgamentos. 2) Manter um diário contribui para a organização dos pensamentos. 3) A ordem exterior – arrumações de armários, garagem, dispensa, etc. – produz ordem interior (na tua mente). 4) Considere que as pessoas não se importam com você tanto quanto você imagina. 5) Reduza o tempo que você fica online. [Leia também: “Nosso medo de fracassar”.]
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