Tenho certeza: a privacidade é uma escolha. Em “Como Ficar Sozinho”, Jonathan Franzen escreveu: “Privacidade, para mim, não significa manter minha vida pessoal longe dos outros. Significa me manter longe da vida pessoal dos outros”. Admitir/omitir as próprias idiossincrasias é uma coisa, evitar contagiar-se pelo excesso de informações sobra a vida alheia é outra.
Sempre fui tolerante com pessoas que falam compulsivamente de si mesmas, de suas opiniões, suas posses, seus projetos, suas “jogadas”; pessoas desatadas em seus monólogos enfadonhos, como se não houvesse mais ninguém no mundo além delas. Eu ficava ali, pensando em como escapar e me dizendo: “Deixa falar. Assim não sobra espaço para mim e, não sobrando espaço para mim, não falo de mim, coisa que, aliás, adoro”.
AVERSÃO
Mudei muito. De uns anos para cá, fui erguendo, tijolo por tijolo, uma fortaleza de aversão a esse tipo de criatura, à qual trato como se portasse doença contagiosa. Agora não apenas talho a discurseira com uma elegante machadada como também me abduzo. Como “essa gente” (cuidado com essa expressão, hein?) não tem desconfiômetro, te tacham: impaciente, apressadinho, ansioso, workaholic, etc. Liguei o foda-se!
Reformulei aquele ditado “antes só do que mal acompanhado”, elevando-o a um patamar superior: “É sozinho que me encontro mais”. A capacidade de estar (bem) sozinho – de praticar firmemente a opção de ficar consigo mesmo – é uma atitude tão rara quanto desvalorizada nestes tempos de falação e gritaria. A cultura brasileira, calcada na extroversão e na sociabilidade, tampouco contribui para o exercício de si mesmo.
FATOR CULTURAL
No Brasil, a opção por estar só pode ser vista como doença, afronta ou rejeição, e os brasileiros não suportam o “sentimento de rejeição”. [Sentimento é soberano. Se você sente algo, o que você sente é um fato, claro. Mas não significa, necessariamente, que está sendo rejeitado. É só um sentimento.] Já morei nos Estados Unidos e no momento vivo na Itália. Me chama atenção a maneira como essas duas culturas incentivam e preservam a privacidade e o respeito ao direito de ficar sozinho.
Em uma reunião em casa de amigos, por exemplo, se bate aquela vontade de ir embora, simplesmente digo “pessoal, preciso ir” ou “gente, chegou a minha hora” ou algo assim, e ninguém me retruca com um “já vai? Por quê?” ou “ah, não, é cedo, fica mais!” ou “está se sentindo bem?”… As pessoas aqui não dizem absolutamente nada disso. Se você está a fim de ir embora, seja quando for, tudo bem. Acho isso educado, respeitoso e agradável.
BULLYING
Agora um salto no tempo: me parece que nos anos 1970 o termo bullying não existia ou não era usado para descrever “formas persistentes de violência verbal ou física com o objetivo de intimidar, humilhar ou maltratar o outro”. Mas hoje entendo: eu sofria bullying por não querer participar de brincadeiras idiotas como preparar armadilhas para alguém levar uma rasteira ou impedir o colega de entrar no ônibus puxando-o pela alça da bolsa tiracolo (sim, íamos à escola de ônibus ou “de coletivo”).
Eu era tímido e introvertido, e aprendia com extrema facilidade, mas procurava negar esse modo de ser, como se fosse um defeito (até porque os meus colegas riam disso). Daí, vejam que coincidência, enquanto eu pesquisava a vida do super quieto e introspectivo empresário Ivens Dias Branco (1934-2016), sobre quem publiquei uma biografia em 2013, descobri “O Poder dos Quietos”, de Susan Cain.
OS QUIETOS
“O Poder dos Quietos” fala de introversão, me ajudou a entender o comportamento do sr. Ivens e o meu próprio. Lendo-o, entendi a diferença entre timidez e introversão: “Timidez tem a ver com medo do julgamento social. Introversão é a maneira como alguém reage aos estímulos sociais”. Ou seja, eu fui tímido, sim, quando garoto, mas isto foi sendo superado com atitudes que reforçavam a minha autoestima. Por outro lado, nunca deixei de ser um baita de um introvertido.
Enquanto os extrovertidos precisam de estimulação exterior o tempo todo, os introvertidos se sentem mais à vontade em ambientes silenciosos e calmos. Alguns dos meus melhores amigos são extrovertidos e altamente sociáveis, o contrário de mim. Adoro isso neles. São, digamos, “tipicamente brasileiros”. [Não quero dizer que a cultura brasileira (eminentemente extrovertida) é pior ou melhor que outras culturas, ok? Não existe isso de cultura pior ou melhor.]
SOLIDÃO É DIFERENTE
Estou apenas afirmando que a preferência por estar sozinho pode não ter nada que ver com solidão. E o mais importante: essa opção, se bem dosada, pode gerar ideias novas, porque, ao contrário do que se pensa, nem todo mundo consegue trabalhar bem em grupo. Me lembro de quando me colocavam para pensar soluções no meio de um monte de gente que muitas vezes eu nem conhecia. Para mim, aquilo era repulsivo, desorientador. [Além de introvertido, sou PAS (pessoa altamente sensível).]
Por outro lado, se me davam uma tarefa de qualquer grau de complexidade e um prazo viável, eu me enfiava em algum lugar tranquilo e saía de lá com um monte de propostas. Certas profissões são mais difíceis de exercer 100% a sós. A de repórter é uma delas (fui repórter). O processo de reportagem é interpessoal por natureza. Você tem que estar em contato permanente com os outros (“os personagens”). Isso pode ser irrealizável para um tímido, mas não necessariamente complicado para um introvertido.
AUTOCONTROLE
Raramente libero informações íntimas nas redes sociais ou no mundo concreto (onde as coisas são bem mais difusas). Porque, na prática, o senso de privacidade é um forma de autocontrole. A gente controla o público para se liberar no privado. Não tenho mais dúvidas: é sozinho que consigo me re-energizar. Se por acaso você também é assim, não diga por aí “pessoas me cansam!”. O social presencial (ainda) é inegável, e você não pode ser sempre você (risos). É o preço a pagar. O lado bom é que privacidade é uma escolha, não uma obrigação.
[Outra referência legal sobre esses temas é “Como Ficar Sozinho“, da coleção The School of Life.]
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