A essa altura, com tantos estudos sérios publicados sobre esse assunto, ninguém mais afirmaria que talento é questão de genética. No entanto, durante séculos a crença de que o talento fosse algo natural teve um efeito tão sedutor que distorceu a percepção a respeito. Mesmo nos Estados Unidos, onde a ideia de dedicação intensiva (try harder) é quase um mantra, ainda se espera que resultados excelentes possam ser alcançados por habilidade inata e, consequentemente, pouco esforço. O fato é que, quando somados, inteligência e talento se explicam.
EXPERIMENTO
Em 2010, dois psicólogos da Universidade de Harvard – Chia-Jung Tsay e Mahzarin R. Banaji – desenvolveram um estudo comparativo dos modos como são percebidos os naturals (as pessoas que alcançam ótimos resultados sem dificuldades) e os strivers (os batalhadores incansáveis). Primeiramente, Tsay e Banaji submeteram dois pianistas à apreciação de um público composto por 103 especialistas. O primeiro pianista foi apresentado como natural; o segundo, como striver.
Todos os especialistas afirmaram que o primeiro pianista (natural) tocava melhor, mas, na verdade, os dois pianistas ouvidos eram o mesmo, e ambas as execuções eram de alto nível. O experimento foi repetido com mais especialistas, agora incluindo também diletantes, num total de 549 ouvintes. Quem é o melhor? O natural ou o striver? De novo, o pianista apresentado como tendo talento natural conquistou a esmagadora maioria dos votos. Tsay e Banaji, então, concluíram o seguinte:
1) A etiqueta “talento natural” influenciou a decisão dos ouvintes;
2) É muito provável que este preconceito positivo ocorra não apenas no campo das artes, mas também na áreas empresarial e de esportes.
EVITE ILUSÕES
Mencionei este exemplo simples (há muitos estudos desse tipo) para mostrar que, no plano racional, aceitamos que sem empenho e dedicação nenhuma aptidão específica floresce. No plano emocional, porém, muita gente ainda prefere se deixar levar por ilusões mágicas.
Me lembro de quando Philip Roth (meu ficcionista favorito, morto em 2018) resolveu se aposentar, em 2014. Choveram artigos de jornais e posts nas redes sociais pedindo que ele continuasse a escrever; afinal, “escrever deve ser uma tarefa fácil para um artista grandioso como o senhor”. Mas as narrativas fortes e límpidas de Roth eram resultado, evidentemente, de muito esforço e dedicação. A propósito, admiro Roth por ter escolhido não esconder de seus leitores os vestígios de seu cansaço.
Outra coisa: há mais de uma década deixei de frequentar o chamado mundo corporativo – tornei-me self-employed muito cedo (risos) – mas sei que persiste certo preconceito em relação às pessoas (eficazes) “esforçadas”, como se elas fossem inferiores às “inteligentes” e às “talentosas”. Sei também que o conteúdo de “Mindset”, livro de Carol Dweck, psicóloga e professora da Universidade Stanford, virou moda no circuito dos gestores no Brasil.
TIPOS DE MINDSET
A ideia central das pesquisas de Dweck, obtidas por meio de entrevistas e mapeamentos cerebrais, é tão simples quanto sintética. Segundo ela, há dois tipos de mentalidade (mindset):
- mindset fixo: uma pessoa com essa mentalidade acredita que as suas qualidades mais básicas, como inteligência e talento, são imutáveis; acredita que apenas o talento (sem necessidade de grande esforço) gera algum sucesso. “Uma pessoa inteligente que pensa assim perde muito tempo documentando e exibindo o seu talento, mas gasta pouco tempo desenvolvendo-o.”
- mindset de crescimento ou dinâmico: a pessoa com essa mentalidade acredita que a inteligência e o talento são apenas o ponto de partida e que suas habilidades mais básicas podem ser desenvolvidas através de dedicação e muito trabalho. “Essa visão gera (1) prazer pelo aprendizado – mais do que pelo resultado em si – e (2) resiliência, fator essencial para qualquer realização importante na vida.”
É como se Carol Dweck estivesse nos dizendo “a terra é redonda e gira em torno do sol”. Parece uma obviedade, mas não é. Ao contrário. A admiração conquistada pelo seu trabalho reside exatamente no fato de ela ter desmontado um tabu, e o tom de sua argumentação é mais sugestivo que impositivo. Ambos mindsets espelham a maneira como cada indivíduo expressa suas competências e a maneira como encaram a vida; e ambos podem ser bem-sucedidos em seus primeiros projetos.
COMO ENCARAR O FRACASSO
Quanta gente você conhece que não se desenvolveu em determinada carreira por acreditar que não possuía certas habilidades inatas, enquanto outros se gabavam de suas incríveis capacidades que, no fim das contas, nada acrescentavam de concreto? E as “inteligências brilhantes” que só brilhavam para confirmar (para si mesmas e para os outros) o quão brilhantes eram/são?
No livro, o volume de textos biográficos de indivíduos encaixáveis em ambos mindsets é tão grande que torna os capítulos um tanto recorrentes e até um pouco cansativos, mas entendo que tinha de ser assim. A autora queria cutucar vários âmbitos e setores para demonstrar que o entendimento desses dois tipos de mentalidade é de fundamental importância para o relacionamento entre para pais e filhos, professores e alunos, chefes e subordinados, treinadores e esportistas, mestres e artistas, etc.
A grande diferença entre as duas mentalidades está na maneira de encarar o fracasso. Pessoas com mindset fixo se dão bem até o primeiro fracasso. Daí começam a “desabar”. O mindset fixo é drástico e sem meios-tons. Não oferece a possibilidade de aprender passo a passo através da perseverança e do erro. Ou você é ou você não é. Ou você é excepcional ou você é nada. Cruel, não?
GENES + APRENDIZADO
Eu me enxerguei dentro da argumentação de Dweck. Concluí que já tive características do mindset fixo. Exemplos: durante um bom tempo, dei mais atenção aos fracassos que aos sucessos; me esforcei para atender às expectativas alheias mais do que às minhas; e repeti estratégias decepcionantes por achar que, no fim das contas, a minha “evidente inteligência” resolveria a parada…
Interessante, isso: temos a nosso favor a permanente plasticidade do nosso cérebro, fato que nos habilita a aprender coisas novas sempre, sempre. Mas esse presente da natureza é ineficaz se não usado. Os dados apresentados em “Mindset”, aliás, indicam que as credenciais que adotamos em relação a nós mesmos influenciam o modo como administramos as nossas vidas e podem também determinar:
- se nos tornaremos a pessoa que desejamos ser;
- se obteremos as coisas às quais atribuímos valor.
Adotar um mindset dinâmico, portanto, nos liberta da necessidade de nos colocarmos sempre à prova e evita as depressões causadas pelos eventuais (e inevitáveis) fracassos. Talento e inteligência têm a ver com genes, sim, mas do nosso nascimento em diante os genes e o ambiente cooperam entre si à medida que aprendemos a viver. “Mais: os genes precisam de indicações claras do ambiente para trabalharem de modo apropriado.” Cabe a nós fornecer essas indicações.
Posso estar enganada, mas percebo que há um certo desprezo pelo empenho, pelo esforço e pelo investimento no conhecimento. As vezes, me sinto obsoleta diante de tanta gente jovem (muito jovem) oferecendo consultorias… Mas, isso dura até eu gastar um tempo ouvindo o que têm a dizer e perceber que encontra-se em algum livro que alguém (à custa de muita pesquisa) escreveu e publicou…Adorei o texto!
Marcilene,
Obrigado pelo retorno.
Eu também sinto isso, às vezes.
Certa obsolescência, digo. Mas acho que não tem nada a ver com idade, mas sim com o fluxo interminável de “novidades” do mundo tecnológico atual.
Abraço, S