O fato é que não sabemos quais as causas exatas de nossos sucessos e de nossos fracassos e por isso criamos histórias para justificá-los. Por exemplo, você aposta no pôquer todas as fichas em uma trinca de valetes, ganha R$ 100 mil, diz para si mesmo “senti a sorte do meu lado” e aposta mais. Já um indivíduo que escapa ileso de um grave acidente de carro costuma considerar-se “o escolhido”.
O que chamamos de sorte na verdade é apenas uma atitude positiva para nos mantermos abertos às oportunidades ou para nos fazer perceber padrões em processos que, se observarmos bem, não têm padrão nenhum. A ilusão de que a sorte existe também nos permite agir de acordo com as circunstâncias. Vejamos algumas dessas tais circunstâncias:
- Minimizar a própria competência: “Tudo não passou de sorte”;
- Ocultar a incompetência: “Ah, faltou sorte”;
- Adular: “Vocês são excelentes, mas tiveram azar”;
- Incentivar: “Avante! Tudo que você toca vira ouro”;
- Lamentar: “Todo mundo é sortudo, menos eu”.
PARADIGMA IMUTÁVEL
Em sociedades altamente competitivas, como essas em que vivemos, a ideia de sorte está acoplada a um paradigma tão antigo quanto imutável: o de que o sucesso (financeiro) decorre principalmente (se não unicamente) de características individuais como inteligência & talento, vontade, esforço, determinação, habilidade em correr riscos, etc. Mas onde entra a chamada “pitada de sorte” (supondo que ela exista)?
Três pesquisadores italianos – os físicos Alessandro Pluchino e Andrea Raspisarda e o economista Alessio Biondo – resolveram questionar o ideal de meritocracia contido nessas ideias e formularam a seguinte pergunta: “Se é verdade que algum grau de talento é necessário para ter sucesso na vida, por que a maioria das pessoas mais talentosas não alcançam os picos de sucesso, sendo ultrapassadas muitas vezes por gente medíocre?”.
Os três criaram um método racional de pontuações e recompensas para quantificar o talento e o sucesso a fim de verificar qual o papel das “forças externas” (não pessoais) nas histórias de vida de pessoas bem-sucedidas em suas carreiras. A pesquisa indica que o sucesso (traduzido em “dinheiro e visibilidade”) é muito mais aleatório do que imaginamos.
Entre as pessoas pesquisadas, as mais talentosas obtiveram o maior retorno possível com a oportunidade que lhes foi dada, o que, de certa forma, era esperado. Porém, uma minoria (20%) dos talentosos obteve a maior fatia (44%) do sucesso (traduzido, repito, como “dinheiro e visibilidade”).
Isso indica uma distribuição desigual entre talento e sucesso, seguindo uma tendência socioeconômica geral, creio eu. [Segundo a Oxfam International, a soma da riqueza de apenas oito indivíduos é igual à metade da soma da riqueza de todas as pessoas mais pobres do mundo.]
SORTE E MERITOCRACIA
O mais interessante nessa pesquisa, no entanto, é o seguinte: apesar de o talento ser mesmo altamente relevante para o sucesso, os talentos dos pesquisados mais bem-sucedidos não eram muito superiores aos talentos das outras pessoas talentosas e menos bem-sucedidas.
Conclusão: as pessoas mais bem-sucedidas da pesquisa contaram com mais… Sorte! E não se trata de “uma pitada”, não, mas sim de uma dose considerável. Os mais bem-sucedidos foram beneficiados direta ou indiretamente por acontecimentos externos diversos, aleatórios, alheios às suas vontades.
Essa pesquisa suscita discussões muito importantes. Uma delas: a maioria das estratégias de distribuição de fundos, bolsas, patrocínios e honrarias se baseia no sucesso precedente dos candidatos.
EQUAÇÃO SIMPLES
Porém, esse método de seleção cria uma bolha de concentração de relacionamentos e de recursos, dentro da qual os mais bem-sucedidos têm mais chances de se tornarem ainda mais bem-sucedidos. A equação é simples: maior visibilidade é igual a mais acesso a recursos, o que conduz a mais sucesso.
Daí a gente se pergunta: qual a melhor maneira de distribuir oportunidades? Fazer grandes transferências de recursos para apenas poucos candidatos muito bem-sucedidos ou ter um leque mais amplo de subsídios menores para muitas pessoas de “sucesso médio” e menor visibilidade?
ALEATORIEDADE
Fiz doutorado com recursos próprios, mas sei o quanto o financiamento público de pesquisas é decisivo para a continuidade da geração de novos conhecimentos. Então, para promover a diversidade e a inovação, me parece claro que essa meritocracia precisa ser repensada.
O dinheiro público tanto quanto o capital privado têm que atingir também as pessoas talentosas menos visíveis. Até porque a sorte, se existir, é aleatória. O merecimento, não. O merecimento é planejado, calculado e direcionado (ou pelo menos deveria sê-lo).