Teoricamente, em uma sociedade baseada no mérito (e não na herança familiar, por exemplo), se você tiver talento e determinação se dará bem na vida. Mas se acreditarmos que uma sociedade assim possa/deva existir, será obrigatório considerarmos (por dedução) três fatores: 1) As oportunidades para “subir na vida” teriam de estar ao alcance de todos (sem exceção); 2) Se você conseguir realizar suas ambições, o mérito será teu, mas se você não conseguir o problema será teu também; 3) Suponha que uma pessoa não subiu: isso significa que ela merece ficar lá embaixo? Pois é. Meritocracia é uma ideia vaga. E precisamos falar sobre isso.
RETÓRICA
A retórica do mérito entra no discurso político no início dos anos 1980, primeiramente com Ronald Reagan (EUA) e Tony Blair (Europa), mas continua seu processo persuasivo até os anos de Barack Obama (2008-2016). Mérito, mérito, mérito… O que é? Ter mérito por acaso significa que você venceu uma competição? Que você conseguiu se formar em curso superior e por isso virou engenheiro, médico, economista? Significa ser rico, bonito e cheio da grana? Julgar o mérito com base em resultados concretos parece fácil. Bem mais difícil é criar um conceito de mérito que se encaixe em qualquer circunstância.
O mito da meritocracia vem sendo desconstruído ultimamente por autores relevantes e insuspeitos como Robert Frank (Cornell), Michael Sandel (Harvard) e Daniel Markovits (Yale). Três membros da Ivy League (nada mais elitista do que a Ivy League, diga-se). Fazer parte da Ivy League é sinal de que o “sócio” pôde contar durante toda a vida com o melhores recursos possíveis (financeiros, psicológicos, pedagógicos e midiáticos). Nascer rico é isso: ter acesso às melhores escolas e universidades e aos melhores espaços de autopromoção. Determinação é importante para ricos também, mas não tanto quanto para nós, mortais.
A concentração de riqueza continua bastante hereditária, aliás, conforme apontam esses três autores. Atualmente, dois mil e poucos bilionários detêm, sozinhos, uma riqueza maior que o total da riqueza de 4,6 bilhões de pessoas. É ultrajante. Apesar dessa concentração toda, a gente ainda vê brasileiros de classe média acreditando que meritocracia é uma ideia inclusiva e anti-sistema. Talvez tenham sido influenciados por políticos populistas grotescos que se autodenominam anti-sistema mas que de anti-sistema não têm nada. [A propósito, ser de classe média alta não é ser rico, talkei? (risos).]
PODER E INFLUÊNCIA
Talento e inovação são indiscutivelmente fundamentais ao desenvolvimento socioeconômico, mas não acredito que o mercado – ou a lógica da competição – seja um mecanismo eficaz para reconhecer e recompensar quem chega “lá”. O processo de globalização da economia gerou poucos ricos cada vez mais ricos (e sempre mais influentes na política e nos costumes) e muitos milhões de pobres. Nesse sentido, a meritocracia soa mais como conversa fiada do que qualquer outra coisa.
“Conheço tanta gente que despontou lá embaixo e chegou lá em cima”, você me dirá. Verdade. Eu mesmo sou um exemplo. Filho da classe média baixa (mas com padrão de vida pobre), quando menino eu precisava esperar meses até meus pais me comprarem um tênis novo para substituir o velho (já furado). Entre 1975 e 1985, as escolas públicas em que estudei ainda não eram tão ruins, e, apesar das dificuldades, me formei em jornalismo (trabalhando de dia para pagar a faculdade à noite) e fiz mestrado e doutorado na elitista USP. Mas faço parte da exceção, não da regra.
Outra exceção é o LeBron James, americano gênio do basquete, muito citado em debates sobre meritocracia. Ele virou a encarnação do garoto pobre cujo talento foi aproveitado ao máximo. Mas e se James tivesse nascido em uma época e em um país nos quais ninguém gastaria um centavo para ver homens altos e fortes arremessando uma bola dentro de uma cesta furada? A história de James seria outra, claro. Quantos jogadores de basquete talentosos e determinados como James nasceram no lugar errado e na hora errada e por isso não puderam florescer? Milhares.
VENCER OU PERDER?
Inteligência e talento não funcionam sem determinação e energia para superar obstáculos. Por outro lado, se é verdade que talento é fundamental para o sucesso (seja lá o que isto queira dizer para você), por que a maioria das pessoas mais talentosas são muitas vezes ultrapassadas por gente medíocre? Humm. Tem algo errado aí. Acredite: o fator sorte existe e não tem a ver com fatalidade, mas sim com relacionamentos (network), QI (quem indicou) e visibilidade (ou popularidade).
Mais terrível do que essa constatação é vermos também gente pobre acreditando cegamente nessa lógica dinheiro-visibilidade, veiculada e batida por políticos cínicos. Hoje em dia, essa lógica influencia até as atividades do nosso “tempo livre”: hobbies, esportes, férias, vestuário, sexualidade, etc. E não faltam manuais cafonas tentando nos ensinar a atingir o sucesso (e o orgasmo)… Sucesso visto como dinheiro e poder. Orgasmo encarado como cheguei mesmo “lá”.
A meritocracia é muito sedutora se você vence, mas é arrasadora se você perde. Não por acaso, há mais suicídios em países desenvolvidos, onde o individualismo pode ser exercido mais plenamente, do que no resto do mundo. A lógica binária vencer-perder individualiza tanto o mérito pela vitória quanto a culpa pela derrota, e isso cria um mundo tão deprimente quanto depressivo. Políticas de inclusão social graduais seriam muito mais eficientes que um sistema meritocrático, afirma Daniel Markovits, autor de “The Meritocracy Trap”.
SELEÇÃO NATURAL
O fato é que as diferenças socioeconômicas continuam sendo decisivas para a seleção natural (sic). Claro que todo mundo gostaria de ser operado pelo melhor cirurgião, ou de ter os melhores professores para os filhos, ou de ter a certeza de entrar em um avião pilotado pelo comandante mais experiente. Mas todo mundo poderia pagar por esses serviços? E se não pudermos pagar por esses serviços teremos que nos contentar com o quê?
Na prática, o sistema vigente possibilita que o filho chique do teu médico chique se torne o médico chique dos teus filhos. E assim sucessivamente. O que fazer, então? O primeiro passo é voltar a incluir nos debates sobre políticas públicas a dignidade do trabalho e sua função geradora de significado. O segundo é aceitar que sucesso tem significados diferentes de pessoa para pessoa, e que prosperamos não somente quando chegamos “lá”, mas quando ainda temos muito por fazer.
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