Muita gente – de todas as áreas, de filósofos a economistas, mas também o senso comum – acredita que somos fundamentalmente egoístas e motivados somente por interesses pessoais. Se é assim, por que milhões (talvez bilhões) de pessoas ajudam outras, às vezes correndo altos riscos e arcando com custos elevados para si mesmas? Em um mundo convulsivo, acuado por privações, especulações deletérias e caos climático, ser altruísta é mais importante do que se imagina.

CLAREZAS INICIAIS
A palavra altruísmo estará sempre atrelada à palavra ajuda. Para o altruísmo ocorrer, alguma forma de ajuda precisa ser posta em prática. Mais que uma (boa) intenção, o altruísmo é uma ação implementada para tentar atingir o objetivo de melhorar a vida de quem precisa sem esperar nada em troca. Mas não se trata de uma ajuda qualquer ou de autoajuda. Para ser altruística, a ajuda tem de estar focada no outro, não importando se esse outro faz parte da nossa rede de relacionamentos ou se é um estranho.
Há ainda as ações pró-sociais, que beneficiam todos os envolvidos. Exemplos de ações pró-sociais: não jogar lixo no chão, dirigir o próprio carro de um modo que seja seguro para si e para os outros, ser voluntário em um projeto ambiental do bairro, etc. As pessoas cooperam/colaboram porque elas acreditam no bem comum. Contribui-se para uma cidade mais limpa, por exemplo, e todos desfrutam os resultados. As atitudes pró-sociais envolvem gentileza e responsabilidade, mas não são altruísticas.
SACRIFÍCIOS (OU NÃO)
Esses esboços de definição contribuem para evitar confusões e idealizações. Por exemplo, acreditar que só existe altruísmo em experiências nas quais alguém se sacrifica perigosamente ou coloca em risco a própria integridade pelo outro é um equívoco. Concordo que histórias de pessoas que entram em edifícios em chamas para salvar desconhecidos ou que fazem voto de pobreza e vão morar em mosteiros longínquos contêm heroísmos e desapegos.
Não é o caso de minimizar episódios desse tipo, mas doações mirabolantes, arriscadas, heroicas nem sempre são altruísticas. Uma pessoa pode tentar salvar outra de um incêndio pensando apenas em conquistar notoriedade. Outra pode ir morar no interior da Índia, em busca de desapego, mas a serviço do próprio ego. O sacrifício (espalhafatoso ou discreto) não é o que define o altruísmo. Até porque algumas formas de ajuda podem envolver ainda mais sacrifícios (doar um rim, por exemplo).
AJUDAS “INCOMPLETAS”
Toda ação altruística resulta em benefício para alguém? Infelizmente, não. A causa disso pode ser uma avaliação incorreta da situação. Você decide ajudar um amigo viciado em jogos de azar. Ele te pede empréstimo para pagar dívidas de jogo. Você dá o dinheiro e gera um alívio (bem-estar) imediato. Uma avaliação mais abrangente talvez mostrasse que a tua boa ação apenas adiará a solução do problema. Teu amigo certamente vai voltar a jogar e em algum momento vai perder.
Outro exemplo de ajuda que pode não gerar o resultado esperado: quando se cria entre o “generoso” e o “necessitado” uma relação de codependência. “Entre familiares e casais, por exemplo, são comuns os relacionamentos codependentes, nos quais a ajuda é imposta, não dando ao outro a possibilidade de desenvolver autonomia própria. Quem ajuda busca na verdade uma posição de poder, para tornar-se indispensável”, afirma Alberto Voci, da Università di Padova, autor de “Essere Altruisti”.

ALTRUÍSTAS E PSICOPATAS
Abigail Marsh, neurocientista americana, analisou os cérebros de crianças com evidentes traços psicopáticos (frieza e indiferença, por exemplo) e de adultos que doaram um rim para estranhos. Seu ótimo livro “The Fear Factor” aborda a capacidade humana de se importar com os outros com base em investigações clínicas, imagens cerebrais que desvendam a natureza da empatia e da compaixão (pilares do altruísmo) e miríades de dados que sugerem que a humanidade é hoje mais generosa do que nunca.
Marsh descobriu que a configuração dos cérebros dos altruístas é diferente da configuração dos cérebros dos psicopatas. Os psicopatas são incapazes de interpretar expressões de medo ou aflição no rosto dos outros (daí a palavra “medo” do título do livro de Marsh). “As pessoas realmente altruístas são diferentes não somente por serem mais solidárias que a média, mas por serem solidárias tanto com pessoas com as quais se relacionam (família, amigos, colegas) quanto com estranhos”, sublinha.
CONHECIDOS E ESTRANHOS
“Embora Darwin tenha enfatizado a importância da cooperação para a evolução das espécies, algumas teorias evolucionistas modernas defenderam que o altruísmo só fazia sentido se fosse proporcional ao grau de parentesco biológico. Mas os avanços nesse campo permitiram considerar um altruísmo ampliado, que transcende os laços familiares e tribais e destaca o caráter ‘super cooperador’ do ser humano”, diz Matthieu Ricard, autor de “A Revolução do Altruísmo”.
Segue firme a crença de que o altruísmo entre parentes tem de ser preferencial, porque “temos certeza de que são realmente merecedores”. Por colocar os interesses grupais/tribais acima dos interesses sociais/universais, essa regra subentendida sugere certo egoísmo. “As ações das pessoas que quebram essa regra e se movem para ajudar estranhos sugerem uma mudança importante: a convicção de que todo indivíduo é merecedor de compaixão e solidariedade, não apenas quem conhecemos”, diz Marsh.
ALTRUÍSMO EFICAZ
Dados do World Giving Index mostram que o ato de ajudar está em alta contínua há décadas. As três principais formas de generosidade que o Index mede – doação à filantropia, voluntariado e ajuda a desconhecidos – estão crescendo no mundo inteiro. Nesse contexto, emergiu o Altruísmo Eficaz, movimento que encoraja as pessoas a fazerem doações para instituições filantrópicas somente depois de pesquisarem e compreenderem os impactos reais de suas benevolências.

Peter Singer, autor de “O Maior Bem que Podemos Fazer”, embaixador dessa ideia, acredita que contribuir para a compra de mosquiteiros para evitar mortes de crianças por malária é mais eficaz que doar brinquedos para um orfanato. “A ideia é usar os recursos materiais e humanos para realizar o maior bem possível. Por exemplo, utilizar o dinheiro arrecadado para ajudar quem vive na pobreza extrema produz um benefício maior do que se a mesma quantia fosse doada a outras causas”, acredita Singer.
A FOME É POLÍTICA
Uma das privações da pobreza absoluta é a fome, e nossa civilização possui um amplo conhecimento sobre produção, conservação e distribuição de alimentos. Mas esta não é uma questão de ciência, tecnologia e gestão, acredita Matthieu Ricard: “Se todos cultivássemos o altruísmo, os investidores não especulariam com sementes, água e outros recursos essenciais para a sobrevivência”. Agora, o altruísmo terá de considerar também o aquecimento global, cujas consequências são evidentes em todo o mundo.
Sergio, tenho lido com muito carinho suas publicações. Sou grato pela sua partilha! Cada texto seu é um pequeno e precioso ensaio. Este, em especial, é digno de todos os aplausos!!
Sidney, é uma honra tê-lo como leitor do “Rep Ats”.
Abraço, Sergio