Celebridades são hoje: 1) mercadorias expostas em vitrines midiáticas onipresentes; 2) uma indústria de bilhões de dólares que alimenta tabloides, paparazzi, comércios de falsas entrevistas e reality shows. Aquela histeria em torno dos Beatles nos anos 1960 é fichinha perto do que a cultura do espetáculo seria capaz de criar com as tecnologias digitais. Nesse contexto, é difícil identificar as linhas que separam o super fã de um idólatra compulsivo ou de um fanático insano. Mas uma coisa me parece certa: idolatrias e fanatismos diminuem a humanidade.
Graeme Turner, autor de “Understanding Celebrity”, diz que o fenômeno das celebridades começa por volta de 1915, com o estrelato cinematográfico. Desde então, a idolatria aos famosos cresceu exponencialmente. Antes da popularização do cinema, ele afirma, as estrelas eram autônomas. Suas vidas privadas permaneciam protegidas, distintamente próprias, e não se misturavam com suas aparições públicas.
A expressão Síndrome do Culto às Celebridades apareceu pela primeira vez em 2003 numa reportagem do jornal “Daily Mail”. A reportagem abordava um estudo científico feito com adoradores de famosos. Em 2008, outra pesquisa (esta da Universidade de Buffalo, EUA), entrevistou 348 universitários e associou adoração com baixa autoestima. Uma das conclusões: o idólatra não dá atenção a si mesmo e não se gosta.
TONALIDADES
Por ter escrito e estudado biografias, sempre me perguntavam se para escrever sobre uma pessoa (viva ou morta) é preciso admirá-la. “Não necessariamente”, eu respondia. “Mas, no meu caso, o processo fluiu melhor quando eu admirava a pessoa pelo bem ou pelo mal.” Esse “pelo bem ou pelo mal”, que às vezes complicava a resposta, significa que “podemos admirar/apreciar uma vida mesmo quando discordamos totalmente do modo como ela foi vivida”.
Te dou um exemplo relacionado ao culto às celebridades. Uma ex-aluna minha de 24 anos certa vez me propôs como trabalho final escrever um texto biográfico sobre um músico-cantor do qual ela é (era) super fã. “Amo aquele homem”, repetia. Daí que, em uma conversa informal, descobri que ela idolatrava celebridades não apenas das artes, mas também de outras áreas, e suas palavras acerca daquelas “pessoas incríveis” tinham um tom claramente fantasioso, para não dizer fanático.
ANULAÇÃO
Minha ex-aluna acompanhava vorazmente as notícias sobre o ídolo e chorava quando o via. Fazia loucuras para estar na primeira fila dos concertos e invadir bastidores. Obter um autógrafo ou foto com “Ele”, de quem parecia se sentir íntima, era uma jornada espiritual. Mas sua idolatria era inofensiva. Dificilmente sua atitude evoluiria para uma idolatria fanática, como a de gente que se auto explode em nome de deus ou torcedores de futebol praticando linchamentos.
O ídolo dela – “criativo, talentoso, revolucionário e lindo” – era uma hipérbole do que ela, no fundo, queria ser. Porém, embora ela fosse uma fanática “inofensiva”, podemos extrair daí um dado bastante importante: seus valores e crenças estavam repletos de idealizações, e idealizações são a base das idolatrias malévolas. Então, grife aí: diferentemente de um super fã, que admira loucamente o ídolo e sua obra (e ponto), o idólatra tende a se anular como indivíduo à sombra de suas adorações.
ADORAÇÕES
Quando falamos de adoração, do que estamos falando? De adorar pessoas de carne osso (uma atriz, um político, um chefe) e coisas muitas vezes abstratas, como um objeto, uma ideia, uma teoria, uma situação. Tanto o idólatra inofensivo quanto o idólatra fanático é um indivíduo fraco e com baixa autoestima, que se deixa anular por suas adorações, tornando-se incapaz de autogerir a sua própria liberdade.
Fanatismo e idolatria andam de mãos dadas, sim, mas quando o fanatismo se instala as chances de um debate equilibrado e construtivo desaparecem. O escritor Amos Oz, autor de “Como Curar um Fanático”, acredita que as violências do mundo atual não derivam do desequilíbrio entre riqueza e pobreza somente, mas também do fanatismo de nacionalistas, racistas e fundamentalistas de todas as fés e etnias que perseguem e atacam quem pensa diferente e quem lhes parece diferente.
TUDO A VER
Você deve estar se perguntando: “Mas o que isso tem a ver com a minha vida, já que eu não sou nem idólatra nem fanático?”. Well, antes de tudo, idolatria/fanatismo não é uma atitude somente de gente maluca escondida em cavernas. Não. Idólatras e fanáticos estão em toda parte. Então, precisamos pelo menos saber identificá-lo(a)s, e, se necessário, tomar alguma providência antes que causem algum estrago.
E como diferenciar um idólatra inofensivo de um idólatra fanático? Como vimos, o idólatra tende a se enfraquecer como indivíduo à sombra de suas adorações. Já o fanático, não. O fanático é aquele que quer impor o seu fanatismo, mesmo que para isso tenha de passar por cima de si mesmo ou por cima das regras/leis vigentes. Não por acaso, os fanáticos se atraem e formam grupos tão coesos quanto intolerantes.
DAS CERTEZAS
Confesso: sou anti-dogmático por natureza. Porém, para os idólatras auto-anulados e para os fanáticos de carteirinha, os dogmas são inquestionáveis. Exemplos de dogmas, para você entender melhor: 1) para ser (considerado) espírita, você tem que acreditar em reencarnação; 2) para ser (considerado) vegano, você tem que acreditar que animais não podem ser transformados em produtos para uso humano. Uma coisa pressupõe a outra.
Politicamente falando, acredito que a desigualdade social não é natural, mas sim provocada pelos governantes, e por isso prefiro governantes (que pelo menos se dizem) comprometidos com a redução das desigualdades. É uma opção consciente, construída ao longo de décadas, e que, no meu caso, não tem nada que ver com este ou aquele partido ou político em particular. É uma diretriz de vida. Mais: não sou idólatra e muito menos fanático.
Em várias oportunidades estive muito perto de artistas que admiro, mas nunca me aproximei. Por quê? Ok, te respondo, mas seja tolerante com a minha resposta (risos): 1) porque não sinto necessidade de registrar esse tipo de momento; 2) porque, na minha visão, abordar famosos por aí é uma autodeclaração de inferioridade; 3) uma vida cheia de certezas – como a dos idólatras e a dos fanáticos – é muito chata; 4) idolatrias e fanatismos diminuem a humanidade porque transformam o ser humano em coisa e porque representam uma forma de prisão. Uma prisão existencial.
…
Saiba mais sobre Sergio Vilas-Boas.
Siga o Sergio no Instagram.
Precisa de produtor de conteúdos? Fale com o Sergio.