Em “Terra-Pátria“, o educador Edgar Morin escreveu: “Cada um de nós vem da Terra, é da Terra, está sobre a Terra”. Segundo ele, precisamos de uma cidadania não somente (inter)nacional, mas planetária, até porque o atual momento cada vez mais exige de nós um grau maior de consciência sobre o futuro da humanidade como espécie. Concordo: o cosmopolitismo do século 21 será universal porque ligado ao Cosmo. E quero te contar um pouco da minha experiência em relação a isso.
YES, I AM A GREETER
Entre as minhas tantas atividades atuais – incluindo a de cuidar deste site –, trabalhei como greeter, palavra antiga de origem inglesa que indica “a pessoa que dá as boas vindas”; que recepciona com palavras de afeto e incentivo; que transmite mensagens de amizade; e que apresenta a cidade onde mora aos visitantes.
Poderia ser (ou ter sido) greeter em outras cidades que conheço bastante bem, como Belo Horizonte, São Paulo e Nova York, mas aconteceu de eu ser greeter por três anos em Florença, onde morei de 2016 a 2021 (continuo morando na Itália, mas não em cidades grandes). De modo geral o greeter não é um guia turístico, embora existam guias turísticos convencionais que são também greeters.
Um greeter está mais focado em ajudar o visitante a imergir na cultura local do que em passar informações práticas (até porque hoje em dia esse tipo de info pode ser facilmente encontrada na internet ou em manuais impressos). A principal função de um greeter é dar ao visitante uma ideia do funcionamento geral de uma cidade/região/país. Por me tornado um greeter, voltei a refletir sobre o (meu) cosmopolitismo.
VISÃO ATUAL
Me interessam tanto a ideia de mundialização embutida na palavra cosmopolitismo quanto a mentalidade e o consequente comportamento tolerante e ecumênico que o conceito suscita, em sua versão atual – bem mais antenada com o meio ambiente, diga-se. Na visão mais recente, o conceito se aperfeiçoou: de “lugar multicultural” para “Cosmo“. A noção de Cosmo extrapola também a ideia de “cidadão do mundo”.
Os cosmopolitas de hoje acreditam que todos nós devemos buscar novas maneiras de compreender o mundo para nos tornarmos mais conscientes em relação ao futuro do planeta. Faz sentido. Diante da crise ambiental global, não podemos mais considerar a natureza como algo separado de nós ou como um mero pano de fundo da nossa individualidade.
SENTIMENTO
Originalmente, cidadão do mundo é quem pretende superar os limites da divisão geopolítica e as cidadanias nacionais. Os cosmopolitas desde sempre recusam a identidade patriótica que os governos nacionais lhe impõem e reconhecem-se como independentes porque se sentem aprisionados e sufocados pelas fronteiras geopolíticas e identitárias.
Para mim, esse assunto vai muito além dos conceitos acadêmicos e dos belos discursos da ONU. O cosmopolitismo para mim é sobretudo um sentimento pessoal que experimento desde garoto. Explico: cresci em um bairro pobre da periferia de Belo Horizonte (MG). A vida ali continha maravilhas, mas não era cosmopolita. Ao contrário.
E a sólida unidade de pensamento local frequentemente me provocava uma sensação de não pertencimento. Aos meus convivas eu parecia estrangeiro. E era assim mesmo que me sentia. Não por acaso, esse tópico apareceu nos dois romances que publiquei – “Os Estrangeiros do Trem N” e “A Superfície Sobre Nós” –, mas também em meus textos de não ficção.
IR ALÉM
Desde jovem desejei extrapolar fronteiras (reais e simbólicas). Sentir-me (e ser visto como) estrangeiro dentro da minha própria cultura de origem era um sinal claro de que eu precisava me ultrapassar. Como dizia Paulo Leminski: “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”. Ir além, levar-me além. Pois é. Que excitante! [Este artigo foi atualizado em junho de 2022.]
Em maio de 1992 parti de Belo Horizonte para a minha primeira viagem internacional: Nova York. [Até então, só tinha viajado de avião uma vez – de Belo Horizonte para Vitória (ES) – e nunca havia posto os pés em uma metrópole global. Meu mundo era enormemente pequeno, e as minhas expectativas, reduzidamente grandes.]
Quando vi aquelas milhões de pessoas de todos os cantos do mundo em Nova York expondo suas diversidades e abrindo-se às mais diversas formas de dinamismos e intercâmbios e influências e concordâncias e conflitos, ah, aquilo foi para mim como tocar o dedo em um fio elétrico desencapado. Um choque. Eu não podia – e não queria – mais voltar atrás.
QUALIDADE DE VIDA
Dali em diante, atravessei um vertiginoso processo de amadurecimento. Conheci dezenas de metrópoles cosmopolitas e morei em São Paulo por quase vinte anos. A capital paulista foi também uma grande descoberta – pelo menos até me dar conta de que estava raciocinando e agindo como paulistano (risos).
Esclareço: não há nada pior para um cosmopolita do que se sentir ao mesmo tempo adaptado e estagnado. Ora, então quer dizer que para habitar uma cosmópole sou obrigado a enfrentar poluição, tráfego insano e preços absurdos (em nome de confortos que nada têm a ver com o meu jeito minimalista de ser)? Obviamente, não, pensei.
E comecei a acreditar que o (meu) ideal de cosmopolitismo poderia harmonizar-se perfeitamente com a ideia de qualidade de vida. A expressão qualidade de vida pode te parecer meio abstrata, porque expressa diferentes sentidos de pessoa para pessoa, mas, no fundo, significa uma coisa bastante simples: ter o maior controle possível sobre o uso do tempo.
CONEXÃO MAIOR
Por ter cidadania italiana (da parte da minha mãe), a Itália surgiu como opção e Florença como destino certo. Florença tem 380 mil habitantes espalhados. Para os padrões brasileiros, é uma cidade pequena. Para os padrões europeus, é uma cidade de médio porte.
Depois de ter vindo morar em Florença, onde cosmopolitismo tradicional e qualidade de vida podem andar juntos, percebi que a ideia (ou o ideal) de ser cidadão do mundo já não me bastava; percebi que eu precisava de uma conexão ainda maior, uma que visualizasse o Cosmo.
SAPIENS
Ser cosmopolita hoje em dia tem menos a ver com lugares multiculturais e mais a ver com o Todo. O mais interessante dessa nova noção é que você hoje em dia não precisa ser (ou se sentir) “multicultural” para ser parte do Cosmo. Se o seu lugar de escolha atual (não importa onde) te é suficiente, ótimo, que assim seja.
No entanto, por mais local que você prefira ser, a sua visão de mundo pode abranger o Cosmo, sim. Para isso, você precisará reconectar a sua “identidade cosmológica” com a sua identidade pessoal. Trata-se de um processo de conscientização, com dois objetivos muito claros: 1) promover ações em prol do bem comum; e 2) ativar sinergias criativas e construtivas, indispensáveis para o nosso futuro como Sapiens.
ESPINHOS
Nestes espinhosos tempos de neoconservadorismo, o ideal cosmopolita está enfrentando sérias adversidades. Políticos nacionalistas apoiados por cidadãos descontentes com as promessas da globalização têm atacado fortemente valores básicos como diversidade e transculturalismo. Infelizmente, a globalização que abriu fronteiras econômicas e tornou o mundo menor é a mesma que concentra renda e exclui.
Pior do que “a globalização para uns poucos” é o remédio proposto por populistas como Donald Trump, Boris Johnson, Marine Le Pen, Matteo Salvini, JMB, entre outros nacionalistas ignorantes. O fato é que as conquistas dos direitos de trabalhadores, mulheres, indígenas, negros, LGBTs, etc. estão sofrendo retrocessos. Na visão desses políticos retardados, grosseiros e cafonas a sustentabilidade não é uma ideia produtiva (sic).
A vida na Terra, algo muito, mas muito maior que o nosso piccolo mondo, está sob risco (cientificamente comprovado) de extinção. Portanto, precisamos reafirmar, aperfeiçoar e ampliar os valores universais que construímos, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos; e precisamos mais e mais de cosmopolitas realmente antenados com o ambientalismo global, porque o Cosmo é aqui.
…
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Que texto encantador Sérgio. Fazia tempo que não lia algo seu, mas eis que há pouco navegando pelo LinkedIn vi uma postagem sua e resolvi entrar no “repensando atitudes” e por ali fiquei um bom tempo lendo suas postagens. Adoro leituras sobre comportamento humano. Talvez não vai se lembrar, mas fui seu aluno por algumas aulas na ABJL. Digo algumas porque o ano em que fiz a pós coincidiu justamente com a sua saída do grupo. Senti muito, porque me identifiquei demais contigo, principalmente na forma apaixonante de ensinar algo que sempre acreditou. Comprei até um livro que você citou, tamanha a intensidade com que falou com a turma logo no primeiro dia: “Elogiemos os homens ilustres”. Devorei! hehe. Bom só quis dar um oi e desejar tudo de bom pra você ai Itália. Passarei com mais frequência por aqui, afinal, tempo não me falta agora. Depois de 24 anos de microfone e na gerente de jornalismo de uma empresa de comunicação aqui em São Paulo, resolvi me permitir tirar um sabático para repensar um pouco a vida. Acho que não foi à toa encontrar a sua página, hehhe. Abs Patrick Santos
Olá, Patrick, me lembro de você, até porque sou eu mesmo uma “pessoa altamente sensível” e, logo, muito empático.
O livro que te indiquei não é uma obra de fácil leitura. Se o indiquei pra você, é porque acreditei na sua competência como leitor.
Que bom saber que o “Rep Ats” te tocou de alguma forma. Isso, por si só, me encoraja muito.
Boa sorte em seu processo de “repensar suas atitudes”. Abraço, Sergio