O afã de adquirir (ou de apoderar-se de) coisas tem motivações e implicações, claro. Pode ser consumismo? Certamente. Hobby? Talvez. Instinto de preservação? Tampouco se descarta. Afeta o futuro do planeta? Uma resposta afirmativa seria mais que sensata. Até porque todo objeto retido não é apenas um objeto tirado de circulação, mas também uma matéria prima extraída da natureza, e essas duas consequências já valem este post.
Digamos que você se auto engana dizendo que possui 145 pares de sapatos porque precisa de cada um deles. Não faz sentido (para mim), mas é compreensível. [Compreender não significa concordar, ok?.] Por outro lado, orgulhar-se de ter em casa um baú enorme repleto de canecas de todos os tipos que vêm sendo juntadas/guardadas há mais de trinta anos, bem, isso muda tudo. Muda o quê? Te digo já: colecionar não tem nada a ver com necessidade e uso. Colecionar é reter para eternizar.
Um devoto de Mick Jagger não compraria uma camiseta usada pelo astro em um concerto para metê-la na máquina de lavar e usá-la em uma balada. Uma camiseta usada por Jagger deixa de ser uma simples camiseta para se transformar em “uma conexão com o mundo do sexo, das drogas e do rock in roll” (dizem os fãs). Encarna um sonho, portanto. Objetos colecionados são assim: perdem a função original para se tornarem relíquias sagradas.
ÍMPETOS DIVERSOS
Reter, organizar e (às vezes) exibir com orgulho objetos colecionados é um modo de conectar-se a algo maior, afirmam especialistas; e também já ouvi falar que a razão de ser do colecionismo tem paralelo nas religiões – que, aliás, nasceram do medo da morte e do ideal de vida eterna. Em “To Have and to Hold: An Intimate History of Collectors and Collecting”, Philipp Blom afirma que os autênticos colecionadores possuem dois tipos de ímpeto.
O primeiro ímpeto remete a Giacomo Casanova: a fúria da conquista que se esgota no próprio ato de conquistar. O segundo é totêmico, remete às tumbas dos faraós. Não por acaso as posses dos faraós (suas riquezas e os seus recursos) eram organizadas cuidadosamente em torno dos sarcófagos. Embora fosse uma presença estritamente simbólica, os antigos acreditavam realmente que aquele ordenamento garantiria a eternidade do rei.
“Ao longo dos tempos, muitos colecionadores escolheram ser imortalizados por meio de suas coleções, nomeando-as e doando-as, para que permanecessem”, escreve o excêntrico Bloom, coberto de razão. Te confesso: nunca colecionei nada, e, apesar de ser minimalista, me sinto tão pleno de corpo e alma quanto quem retém obstinadamente ingressos de cinema, ímãs de geladeira, cartões postais, bolinhas de gude, mouse pads, moedas de um centavo, canetas, cabides, miniaturas, etc.
Quando saí de São Paulo para vir morar em Florença, fiquei chocado com a pouca, para não dizer irrisória, quantidade de coisas que eu possuía. Não dava para encher nem metade daqueles guarda-roupas de parede inteira vendidos nas Casas Bahia. Isso não me torna melhor nem pior que ninguém, mas diz algo a meu respeito, evidentemente.
AH, EXPLICAÇÕES
Explicações para a retenção monotemática? Existem algumas, sim, mas muito vagas e imprecisas. Psicanalistas, por exemplo, insistem que os colecionadores buscam conforto no acúmulo porque foram mal amados na infância. Há também quem sustente que a principal motivação para a posse seriada é a ansiedade – ou seja, pinçar, organizar, controlar, garantir. Já os evolucionistas acham que colecionar é uma forma de atrair parceiros afins.
Prefiro uma explicação, digamos, artística. Nesse sentido “O Colecionador” (1965), de William Wyler, baseado no romance de John Fowles, é uma referência interessante (e nada edificante) sobre a mentalidade de um colecionador. Um solitário e frustrado funcionário administrativo ganha na loteria e se dedica à cata de borboletas para a sua imensa coleção. Paralelamente, persegue uma estudante de arte jovem e linda até conhecer todos os seus hábitos diários.
Sua obsessão atinge o ápice no momento em que decide sequestrar a moça e trancá-la em um porão sem janelas, onde ele declara o seu amor por ela. O personagem vivido por Terence Stamp é nada menos que assustador. Para ele, o afeto se traduz em posse e controle (exatamente como a sua atração pelas borboletas). A atmosfera claustrofóbica e ansiogênica do filme sempre me vem à mente quando me deparo com pessoas ciumentas, que tentam anular o(a) outro(a) de todas as formas.
POSSUIR OU ABSTRAIR
No campo da economia comportamental há o Efeito Posse ou Efeito Dotação (Endowment Effect), que descreve a tendência humana a valorizar mais as coisas que já possuímos do que as coisas abstratas, aquelas que não fazem parte (ainda) dos nossos pertences. Exemplo: você resolve reorganizar seus armários. Sente que devia doar roupas que não usa mais, mas sente um “aperto no coração” e as deixa onde estavam. Promete tentar de novo, mas nunca tenta.
O mesmo comportamento se aplica a quem tem um relacionamento fracassado e insiste em continuar nele por medo de perdê-lo. Aliás, experimentos científicos recentes comprovaram que as pessoas atribuem mais peso aos eventos que lhes causam perdas hoje do que aos eventos que podem lhes trazer ganhos ou prazeres amanhã. E não pense que o prazer de procurar e adquirir objetos necessariamente seja sinal/prova de cobiça, mesquinharia ou consumismo. Não. Na verdade, se trata mais de uma crença irracional na ideia de que dinheiro algum pode recompensar os afetos que o tal objeto suscita. O tão falado “valor afetivo”.
AS FEZES DE FELICIA
Há ainda o conceito de “contágio”. Nesse caso, o exemplo mais descritivo é o dos colecionadores de pertences de celebridades, que acreditam que o objetos retidos contêm “a essência da pessoa” famosa que os usara. Lembra de “Priscilla: A Rainha do Deserto”? Pois é. A personagem Felicia (interpretada por Guy Pearce) guarda fezes de sua ídola, Agneta, uma das vocalistas do grupo ABBA (risos), sucesso estrondoso nos anos 1970.
Caramba, tenho mesmo poucos objetos. Mas são 3h da madrugada e não desisto de terminar este texto, mesmo sabendo que posso terminá-lo quando eu quiser. Por quê? Talvez porque sinto que é ele meu, e esse sentimento de “posse” não só me move adiante como me dá uma sensação de perenidade, embora diga para mim mesmo “ah, o texto é do leitor, pelo leitor, para o leitor”. Well, se colecionar é reter para eternizar, talvez eu seja um colecionador, sim, mas do tipo que ocupa pouco espaço (risos).