Já contei por que passei dois anos sem escrever e como vim parar na Itália. Fiz também um resumo de como surgiu o “Repensando Atitudes” e detalhei a minha visão de mundo como escritor. Então, encontrar um apartamento no centro histórico de Florença e enfrentar a burocracia italiana para me estabelecer aqui não foi nada fácil. E ainda tive que encarar aquele meu problema de sempre: grana curta. Vida de escritor é instável. Ter poupança é imperativo. Mas acaba. Como tudo. Daí que tive de ser estagiário depois dos 50 (risos). Explico.

RESEARCH FELLOW
Oficialmente, eu tinha chegado em Florença como research fellow na Università di Firenze (Unifi) e tinha mesmo um projeto de pós-doutorado bem sólido (tenho ainda, aliás), mas eu não estava a fim de ter vínculo institucional. Queria fazer a pesquisa a meu modo, transformá-la no meu próximo livro (em inglês) e já tinha até título (tenho ainda): “Philosophy of Biography”.
No primeiro dia de conversa com o pessoal do “departamento” (detesto essa palavra, em se tratando de universidades), abri o jogo. Disse que a única coisa que eu precisava era de livre acesso à biblioteca da faculdade de ciências sociais, que é fantástica, eu sabia. Eles preferiram negociar: me dariam acesso mas eu teria que participar das reuniões do “departamento” e “dar umas dezenas de aulas grátis”.
Respondi que topava a proposta, se me ajudassem a obter uma bolsa. “Bolsa para pós-doutorado é impossível”, me disseram. “Não temos pós-doutorado aqui.” Saí do Brasil exatamente por estar me sentindo esgotado com a atividade de docente. Dar aulas não estava nos meus planos. Não mais. Muito menos dar aulas de graça.
TURISMO E TURISTAS
O que fiz? Bati na porta de uma empresa de gestão de imóveis para fins turísticos. Tinha visto um folder deles em um bar de Florença, por acaso. E me ofereci para ser recepcionista de turistas. Sim, era diferente de tudo o que eu já havia feito, claro.
Fui topógrafo, projetista, bancário, repórter, editor, pesquisador freelancer, biógrafo, professor universitário, professor dono de escola de pós, etc., mas recepcionista de turistas era o que eu sabia que eles estavam precisando, e fui em frente.
Imagine a reação do cara (de origem paquistanesa) diante do meu CV recheado de realizações e do meu italiano rudimentar, na época. E ainda por cima “um candidato” com mestrado e doutorado!? Daí me ofereci para trabalhar quase de graça por três meses (tipo estagiário), para aprender o “mestiere”.
ENTRE “ANORMAIS”
Para minha sorte, o sujeito que me atendeu era tão “anormal” quanto eu. Me achou “un po’ particolare” (“meio diferente”). A função tinha o nome pomposo de “greeter”. Greeter é quem dá as boas vindas; quem apresenta a cidade aos recém-chegados. Tudo em inglês, ainda bem. Ufa!
Estando na Itália, eu evitava dizer que meu italiano era macarrônico (risos).
Era esse o lado bom do que eu fazia, aliás. O lado ruim: o contato direto com os clientes podia ser estressante quando algo dava errado ou quando as pessoas eram do mal. Apanhei muito. Era um trabalho físico também: girar por Florença de bike, de lá para cá. No verão, sob um calor de 40 graus, era punk.
Na alta temporada (de abril a setembro), trabalhei dia e noite recebendo turistas do mundo todo em aptos chiques alugados via internet. Tudo isso me fez um bem enorme. Entre os tantos benefícios, perdi alguns quilos e ampliei minha visão sobre a cidade em que eu morava. De bike, aliás, eu a via por ângulos incríveis. Se passei no teste para “estagiário”? Sim, passei (risos) e continuei. Até mudei de empresa. Em setembro de 2017, fui para uma multinacional do mesmo setor, e que pagava bem.

MAIS MUDANÇAS
O mais importante daquela atitude não foi apenas atingir o objetivo central ($), mas desmontar alguns padrões mentais meus. Rompi com alguns condicionamentos, como “intelectuais deveriam ser assim assado”, noções meio rígidas de status quo (típicas de um ex-morador do Brasil e de São Paulo), ter empregados domésticos, manter estrutura de rico sendo classe média, etc.
Reformatei meu HD interno , digamos assim. Daí veio a pandemia e… o turismo… você sabe. Pela enésima vez tive que cortar custos o máximo possível. Eu e Patrícia fomos forçados a mudar de apto e ficamos a maior parte do período julho/2020-maio/2021 presos em uma quitinete minúscula.
As restrições de movimento e o dia a dia apertado nos levaram a vislumbrar outra mudança. Viemos para os Apeninos Toscano-Emilianos. Com a maturidade (completei 55 anos em 2021) e a pandemia, tornou-se imperativo morar “ao aberto”. Montanhas me confortam e me inspiram desde sempre. Em breve te conto mais sobre o capítulo “Montanha”. [Este artigo foi atualizado em junho de 2022.]
…
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Adorei este relato.
Grande abraço. E quando puder venha conhecer Salamanca.
SIDENTIFICO TOTAL! Que delícia ler um relato sincero e descomplicado sobre capítulos emocionantes de uma rica vida. Eu também, jornalistinha, vim parar nazoropa e também me meti com reinvenção de caminhos –o que, aliás, permanece quase um motto. Aventuras, essas mutantes… <3 Se vierem um dia cá pros lados de Barcelona, bora tomar um vermut! Abraço
Olá, Susana, obrigado pela mensagem sincera e pelo convite. Você também: se vier pelos lados de Modena ou Bolonha, escreva-nos (mas estamos em “zona rural”, na Itália Profunda, digamos). Pois é. Eu me reinvento desde que nasci… rs… E que assim seja. Abraço
Obrigado por compartilhar! Aprendemos muito com a tua experiência! Eu cheguei a ser babá de cachorros em um hotel para cachorros durante o estagio doutoral em Nova York para completar o orçamento quando a patroa e as crianças foram ficar lá nas férias (de verão daqui). Os cachorros eram tranquilos, o problema era a chefe! E tinha um buldogue que simplesmente me odiava (e eu odiava ele, Boss, o nome). Muito bom o texto, me identifico muito com esses relatos. Espero masi!
Olá, Eduardo. Obrigado pela mensagem. Well, um buldogue de nome Boss remete a dificuldades… rs…
Ser estrangeiro (por opção) é uma condição interessante. A gente se livra dos códigos sociais nacionais (e adota outros, inevitavelmente). Abraço!
É, reinventarnos sempre é imperativo. Lindo seu texto. Por aqui, estamos nos reinventando também. A cada momento. Cuidem-se bem aí, vc e Patrícia.
Olá, Monica, obrigado!
Olhando em retrospectiva: tenho me reinventado a cada ciclo de 4 ou 5 anos, só agora percebo… rs…
Mantenha contato! Take care of yourself as well. Bjs.
Muito boa essa história do estagiário. Abraços,
Bucci, minha vida é tudo menos linear… rs… ABraço!
Que delícia de texto. Li, ri e me emocionei. Posso imaginar a sua mudança e os ganhos que você teve com ela. Certamente, você está recomeçando a viver e com muita energia para continuar aprendendo. Parabéns por sua coragem e por contar com uma parceria especial, a Patrícia, nessa travessia. Toda a minha admiração. Em frente e enfrente.
Toninha, querida, obrigado pela mensagem calorosa de apoio. Sim, Patrícia é uma super parceira. Beijos (abraço no Shige).
Querido Sérgio, sua história de vida está atravessada por ATITUDES que crescem na sensibilidade, na intuição sintética de uma visão de mundo sutil, dramática nos movimentos da luta do cotidiano e na poética produção simbólica da escrita.
O abraço de sua fã,
Cremilda.
Cremilda, querida, que honra receber uma mensagem tão afetuosa de um ser humano tão especial quanto você, e uma das minhas principais referências acadêmicas. Então, sigo tentando estar no (meu) tempo presente… rs… Beijo para você (abraço no Sinval)