Completei seis anos na Itália em outubro de 2022 e desde junho de 2021 moro em um distrito rural na Emilia Romagna. Tendo vivido em Belo Horizonte, Nova York, São Paulo e Florença, achei que era o momento de uma experiência de intimidade diária com a natureza de montanha, que adoro. Daqui, dos Montes Apeninos, então, aproveitei a efeméride para fazer uma reflexão sobre pertencimento, tendo em mente que: 1) minhas configurações psíquicas vão comigo aonde eu for; 2) decidir pertencer é uma opção com prós e contras; 3) preferir não pertencer é também legítimo; 4) ter sido um outsider quase toda a minha vida impulsionou meu autoconhecimento; 5) quanto mais me entendo, mais me aceito – condição decisiva para o verdadeiro pertencimento, que depende de você ser quem realmente é.

ANTES DE EMBARCAR
Me mudei para a Itália em um contexto de crise geral, como indivíduo e como cidadão brasileiro. Entre 2014 e 2016, o Brasil mergulhou na incerteza pela enésima vez. Uma onda de ódio e vingança, alimentada por discursos antidemocráticos (e retrógrados, sob todos os pontos de vista), restaurou aquele velho e deletério embate do tipo “ou você está conosco ou está com eles”. Pessoas egoístas e ultraconservadoras, que ficaram “no armário” durante os trinta anos de governos democráticos pós-ditadura, usaram as redes sociais e as mídias acéfalas para propagar discursos radicais cuja mensagem central é: “Quem manda aqui somos nós, patriarcas brancos. Cabe a nós, seres superiores, corrigir a História e mimar quem nos lambe as botas”.
O verdadeiro pertencimento não requer que você mude; requer que você seja quem é.
Brené Brown
Fermentava-se a ascensão de governantes autocráticos (como Putin). Valores como diversidade, solidariedade, reciprocidade e respeito passaram a sofrer a concorrência desleal de impulsos terrivelmente destrutivos, como rancor, negação, indiferença e desumanização, patrocinados por políticos autoritários e mesquinhos. Não havia perspectiva de o país se manter na rota civilizatória. Isso, no nível macro. No plano pessoal, eu estava profissionalmente estagnado, desiludido com as carreiras de jornalista e professor; encarando as repercussões do meu passado familiar complicado (para dizer o mínimo); me culpando por minha sensação de inadequação e desencaixe; e tentando espantar os fantasmas de depressões e ansiedades intermitentes. O motivo principal, porém, foi idiossincrático: há muito tempo eu queria ser estrangeiro por tempo indeterminado. Eccomi qua!
FAMÍLIA E ORFANDADE
A primeira experiência de pertencimento ocorre na infância, na relação com pais e cuidadores, mas a vida em família nem sempre é garantia de uma saudável sensação de pertencimento. Milhões de crianças com pais presentes são negligenciadas, reprimidas e rejeitadas em suas singularidades. Sob vários aspectos, são órfãs. A orfandade, aliás, precisa ser vista por perspectivas não biológicas. Há os adultos órfãos excluídos do sistema econômico ao qual serviram; e os adultos órfãos refugiados de regimes intolerantes e guerras; e os órfãos culturais, pessoas forçadas a ocultar características de suas personalidades vistas como “erradas” por sociedades opressivas (o indivíduo como cúmplice de seu próprio abandono). Essas e outras formas de orfandade impactam negativamente nossas buscas por pertencimentos fora da família e o significado futuro que damos ao pertencer.

Com o tempo, deixamos o âmbito familiar para buscar vínculos em relacionamentos profissionais, amorosos, de amizade, etc. O sentimento de pertencer (a um lugar, a um grupo ou a alguém) valida e estende nossa existência. Esperamos que nos digam: “Te enxergamos e te entendemos. Seja bem-vindo”. Pertencer é relacionar-se, portanto. Em nome da aceitação, do reconhecimento por nosso valor e competência ou mesmo para evitar a solidão, a gente se doa, somos correspondidos e compartilhamos o que é compartilhável. Isso é bem diferente de fingir fazer parte. Relações de fachada não criam pertencimento. “O verdadeiro pertencimento não requer que você mude; requer que você seja quem é”, escreveu Brené Brown em “A Coragem de Ser Você Mesmo” (2021).
OUTSIDERS E EXCLUÍDOS
Um dos assuntos mais frequentes em minhas psicoterapias – e talvez em todas as psicoterapias do mundo (risos) – foi essa sensação de ser um estranho, de não me adaptar, e aquela maldita voz interior me repetindo continuamente “você é esquisito”, “você não sabe o que está fazendo”, “você não é bom o suficiente”, “você não existe”. Esses monólogos interiores autodestrutivos nascem de alguma relação tóxica com o mundo (principalmente com familiares e cuidadores). Por décadas, fui uma peça redonda dentro de um longo tubo quadrado. O centro do problema, hoje entendo, não era “eu ser como sou”, mas sim o fato de eu ter tentado ocultar meus traumas até de mim mesmo. Calar-se sobre isso só perpetuou minha sensação de inadequação (e de exclusão).
Mesmo num contexto de sofrimento (por exemplo: pobreza, violência, violação de direitos humanos, etc.), o sentimento de não pertencer à própria família está entre as dificuldades mais difíceis de superar, porque destrói a tua noção de amor-próprio. Você nega a tua dor e, mergulhado em teus silêncios, você cria histórias que geralmente te retratam como uma pessoa solitária e indigna de amor. O que acontece depois? Você se torna mestre em tentar se encaixar. Faz de tudo para ser aceito e ver-se inserido. Por ser introvertido e hipersensível, duas características de temperamento que me tornam naturalmente discreto e reservado (e habituado a ficar bem sozinho), disfarçar carências foi até “fácil”. Mas não funcionou. Nunca funciona.
ESPAÇOS E EMPATIAS
Pode-se experimentar o pertencimento numa comunidade, numa área geográfica, numa carreira ou na experiência como habitante de um planeta ameaçado. Minha vocação para a escrita e meu saudável relacionamento com a Patrícia me mantiveram pertencido nos últimos trinta anos. Embora o pertencer tenha caráter identitário (refere-se a quem somos e como somos vistos), tento não me prender a convenções socioculturais. Uma delas me dizia que era vergonhoso me sentir forasteiro, e que, portanto, eu não devia falar sobre isso com ninguém, do mesmo modo que todos nós geralmente evitamos falar de tristeza, dor, inadequação e morte. Além de envolver independência e autonomia, o pertencimento crias levezas e clarezas. Foi assim comigo.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Clarice Lispector, “Pertencer” (crônica, 1968)

Na cultura hiper tecnológica ocorre o inverso. As pessoas se escondem atrás de suas telas (seus bunkers ideológicos) à cata de confirmações para suas crenças e opiniões (sim, o pertencimento também pode ser fantasioso/idealizado). A incivilidade e a grosseria são crescentes. Você é categorizado como sendo isto ou aquilo sem que teu categorizador tenha sequer uma noção de quem você é. Esses bunkers imunizam as pessoas de seus medos, mas não do problema de fundo: ausência de empatia e compaixão. As redes sociais, embora facilitem ações politico-comunitárias, continuam turbinadas por muita dor. Dor que vem da alienação social, do ódio e do preconceito. Machucadas (e por isso vingativas), as pessoas se aferram às suas irrealidades.
VISLUMBRES E PAZ
A pandemia abalou minhas convicções de urbanoide. Paralelamente, percebi que as metrópoles estão muitos parecidas entre si e que eu havia superestimado minhas expectativas em relação a elas. Pertencer a Nova York, São Paulo e Florença me trouxe benefícios: oportunidades de trabalho, multiculturalismo, acesso fácil a serviços essenciais e contato permanente com todas as formas de arte. Por outro lado, minimizei ou ignorei meu papel em cada um desses pertencimentos. Para me encaixar em lugares tão desejáveis (do ponto de vista material) como estes, arquei com altos custos monetários e psicológicos. É assim: você opta por pertencer, mas tem de abrir mão de algo em troca do apoio que você acredita que o lugar ou o grupo te darão.
Em junho de 2021, quando decidi me mudar de Florença para uma zona rural de montanha, eu não tinha nenhuma experiência de morar no interior. No entanto, cá estou. Frassinoro (a vila) tem 400 habitantes. Os outros 1.600 habitantes do município estão espalhados por um território de 95 km2. Nosso distrito fica a 5km da vila. Aqui vivem sete adultos (contando eu e a Patrícia), trinta vacas e quatro cães. [Estou a 100km de Bolonha, 85km de Parma, 60km de Modena.] É uma região rústica e com pouco dinamismo econômico. Esvaziou-se no pós-Guerra, quando milhares de montanari migraram para o norte do país para trabalhar em fábricas. O agudo senso de comunidade dos meus vizinhos e a paz local (beleza e silêncio) me atraíram para cá.
NECESSIDADE E ESCOLHA
Como um estrangeiro cosmopolita orgulhoso de seu cosmopolitismo veio parar aqui? Antes mesmo de vir para a Itália eu vinha sondando estilos de vida diferentes. Minha grande capacidade de adaptação e o autoconhecimento elevado que construí ao longo de décadas me ajudaram a enfrentar a transição. Duas outras características de personalidade jogaram a meu favor: não sou alérgico a mudanças (pelo contrário) e não acredito (nunca acreditei) em soluções idílicas. Além disso, há o fato de que estou envelhecendo (completo 57 anos neste 2022). Embora tenha boa saúde e me sinta jovem, nunca mais serei visto como jovem. Toda decisão/escolha pressupõe perdas e ganhos, mais ainda quando você está quebrando um paradigma pessoal (da cidade para o campo). Detalhe importante: nunca trabalho com a ideia de “definitivo”. Estou aqui hoje, amanhã posso não estar. A liberdade está em poder experimentar.

O pensamento convencional acredita que o pertencimento está ligado a um “lugar mítico” – no sentido de local, mas também no sentido de relacionamento romântico –, que deve ser procurado, procurado até ser encontrado (com sorte!). Mas… E se pertencer não tiver nada a ver com esse tal “lugar mítico”? E se o pertencimento puder ser conquistado com um conjunto de habilidades que nos permitam lidar com as raízes dos nossos sofrimentos como outsiders e como excluídos? Uma coisa é certa: autoconhecimento é fundamental. Quanto mais me conheço, mais me aceito. Quanto mais me aceito, mais me pertenço, e mais me sinto capaz de escolher o “meu lugar” e me adaptar a ele, voluntariamente. Percebe que pertencer é tanto uma necessidade quanto uma escolha?
SOLIDÃO E SOBREVIVÊNCIA
Apesar de se manterem distantes umas das outras, cada vez mais fechadas em suas telas e crenças, as pessoas querem “estar dentro”, embora não saibam “dentro do quê exatamente”. Sentem-se como se todo mundo fizesse parte de uma coisa da qual só elas estão fora. Para muita gente, pertencer é questão de sobrevivência. Não pertencer pode ampliar-lhes a solidão (a solidão indesejada, digo). Independentemente do quanto realizaram ou acumularam e do quanto tentaram empurrar seus verdadeiros problemas para debaixo do tapete, a dor de não pertencer perturbará essas pessoas continuamente. Tenho facilidade de trabalhar sozinho e me divertir sozinho, fatores que sempre levo em conta quando tomo decisões cruciais.
A alienação, a sombra escura do pertencimento, é tão onipresente que podemos chamá-la de epidemia.
Toko-pa Turner, autora de “Belonging: Remembering Ourselves Home” (Her Own Room Press, 2017)
Contudo, cheguei a pensar que aqui nos Apeninos, sem o “suporte” de multidões anônimas ao meu redor, me sentiria sozinho. Passado um ano, o balanço é positivo: o contato diário com a natureza selvagem (onde os invernos são rigorosos e os verões, frescos) me fez bem. As pessoas daqui têm uma história de vida muito diferente da minha. Aqui vive-se em função da tradição, da solidariedade e da simplicidade. A existência ainda me parece bastante condicionada à conquista de confortos impensáveis décadas atrás, como máquinas para facilitar o trabalho para manter a casa aquecida. Para meus generosos vizinhos, a terra, as plantas e os animais são mais importantes que obras de arte e informação geral. Neste ponto, somos diferentes. Para mim, livros, filmes, seriados e artes fortalecem meu elo com o mundo, ampliam meu senso de inserção e comunhão com o universal.
MUTANTE E FLEXÍVEL
Passei a maior parte da vida tentando agradar e me adequar para ser aceito/reconhecido, muitas vezes passando por cima de meus projetos e valores. Descobrir (na pele) que o pertencimento não é nem fixo nem imutável facilitou minha compreensão. Por exemplo, não preciso me transformar em um agricultor ou produtor de leite para provar que estou realmente dentro de onde estou. Na minha visão, somos livres quando entendemos que: 1) podemos pertencer e ao mesmo tempo não pertencer; 2) a decisão de pertencer vem de dentro para fora, não de fora para dentro; 3) ninguém pode roubar de você o teu senso de pertencimento; e 4) dizer que pertenço a mim mesmo significa que vim de onde vim, que foi como foi e que esse caos que você está vendo… sim, sou eu. (23/06/2022)

Cada vez gosto mais dos seus textos.
Obrigado, Alex ! Você é um educador valioso ! Abço
Oi Sérgio ! que bom que você voltou a publicar seus textos !!!!1
Oi Paula !! De vez em quando paro de escrever com as mãos, mas continuo escrevendo mentalmente… rs… Bjo
Belíssimo texto, Sergio. Você escreve com leveza, sem pretensões de ensinar, mas ensinando, pois bem claras são suas argumentações. Muito bom poder sentir um pouco como você está, por aí, em meio a uma paisagem rural e rústica, mas conectado com o mundo. Avante com alegria e paz!
Obrigado pela mensagem generosa, Abel Sidney. Sim, sigo conectado com o mundo, sempre. Abraço!
Ei Sérgio estava sentindo falta. Gosto de ler o que você escreve, sempre me traz muita coisa pra pensar.
Palma! Que bom receber mensagem sua. E saber que meu textos te tocam de alguma forma é um grande incentivo. Beijo, Sergio