A palavra autoajuda nos remete logo a uma série de clichês: gurus falando de campos energéticos, vibrações e divindades; acadêmicos entusiasmados com pesquisas muitas vezes inconsistentes; aventureiros enaltecendo suas jornadas de superação; influenciadores aconselhando qualquer produto em troca de patrocínios; coaches enfatizando o pensamento positivo. A autoajuda é uma fábrica de aconselhamentos genéricos cujo combustível é a nossa insatisfação pessoal. Afinal, autoajuda ajuda?

Na era do hiperconsumo, em que tudo se vende, o moralismo também possui valor monetário. Há moralistas em toda parte pregando não o que acreditam ser o melhor para si mesmos, mas o que acreditam ser o melhor para os outros. Um cobiçado subproduto desse moralismo é a felicidade, ou melhor, o ideal ocidental de felicidade, encarnado pela autoajuda. Na prática, a indústria da autoajuda se apropria de ideias extraídas das religiões e das ciências e as simplifica ou deturpa com finalidades comerciais. Sim, a felicidade virou grande negócio.
PSICOLOGIA POSITIVA
Os pilares da autoajuda são a mídia sensacionalista e a Psicologia Positiva. O sensacionalismo apoia a mania do resultado rápido; e a Psicologia Positiva fornece a base teórica para um efeito motivacional inabalável. Estruturada pelo psicólogo americano Martin Seligman nos anos 1990, a Psicologia Positiva rejeita o foco em problemas e sofrimentos. Em vez disso, busca enfatizar o que é bom e edificante na natureza humana e na vida. No plano individual, detalha o que é (ou o que pode ser) a felicidade para cada um e como conquistá-la.
Talvez os fundamentos da Psicologia Oositiva não sejam um problema em si mesmos. O problema é que a autoajuda os distorce com o intuito de oferecer respostas fáceis. Em uma sociedade veloz e desatenta, a positividade se tornou o mantra da autorrealização. A “doutrina do positivo” estimula pensamentos incentivadores (“você pode”, “você consegue”, “o impossível não existe”). Somos meio que forçados a fingir que viver não é difícil. Mas, pensando bem, se fôssemos otimistas o tempo todo, correríamos o risco de sofrermos um choque diante da realidade, que mais cedo ou mais tarde nos manda a conta.
DOCUMENTÁRIO E CANÇÃO
O documentário “Happy” ilustra bem os fundamentos da Psicologia Positiva. O diretor Roko Belic perguntou a pessoas de diversas classes sociais e idades em 14 países “o que te faz feliz?”. Obteve respostas particulares. O pano de fundo do filme é a “certeza comprovada” de que fatores econômicos têm pouco a ver com satisfação geral (desde que necessidades como alimentação, moradia e outras necessidades básicas estejam atendidas). O filme explora as raízes imateriais da felicidade e afirma que todos podemos ser mais felizes, se quisermos. Um filme em sintonia com o ideal da positividade.

A ideia de que a felicidade “já está dentro de nós” (bastaria que nós a ativássemos) é o lema da canção “Don’t worry, be happy” [Não se preocupe, seja feliz], de Bobby McFerrin. O mestre espiritual indiano Meher Baba (1894-1969) costumava usar essa frase para guiar seus seguidores. Ela foi popularizada em cartões postais e pôsteres na década de 1960. McFerrin gravou-a em 1988. A canção conquistou o mundo com uma letra simples. “Em toda vida, temos problemas/ Mas quando você se preocupa, eles se multiplicam/ Não se preocupe, seja feliz agora.”
INDIVIDUAL, NÃO SOCIAL
Os produtos e subprodutos da autoajuda (livros, filmes, seminários, retiros espirituais, fórmulas, dietas, programações linguísticas, coaching, etc.) se dirigem ao individual, não ao social. Ocupam-se da satisfação pessoal, não da experiência coletiva. Carreira, saúde, estética e relacionamentos são alguns dos temas centrados no eu. Daí brotam ensinamentos sobre como liderar, como educar filhos, como emagrecer, etc. O alvo é o indivíduo (e o individualismo).
Os consumidores estão na verdade tentando se adaptar a uma cobrança onipresente por desenvolvimento, transformação, inovação e aprendizado contínuos. Não por acaso, existe coach para tudo. Coach de vida, de carreira, de adolescência, de família, de bebês, de espiritualidade, de sexo, etc. “O coaching se tornou uma ferramenta psicológica essencial em uma cultura que gira em torno do eu”, escreveu Svend Brinkmann em “Positividade Tóxica“. O eu é o aspecto mais importante da vida.
O QUE É O “EU”?
No entanto, os gurus trabalham com um conceito de eu que não resiste a um exame mais atento. As neurociências têm mostrado que não há no cérebro um centro onde todas as coisas se juntam e formam isso que chamamos de eu. Temos vários eus, na verdade. Os porta-vozes da autoajuda afirmam que viver a serviço do ego não pode nos fazer felizes. No entanto, a abordagem da felicidade focada no otimismo e obcecada por metas é exatamente o tipo de coisa que o ego adora. Pode haver um eu sem todo o resto? Claro que não. Nós estamos na sociedade e ela está em nós.
Embora existam muitas maneiras de mensurar, avaliar e desenvolver o eu. Mas ainda não temos clara ideia do que o eu realmente é. O que sabemos é que a atual epidemia de depressão e burnout (corpo e mente dando sinais de desilusão e esgotamento) é a ponta do iceberg. É como se uma voz estivesse sempre nos dizendo que não somos bons o suficiente e que não podemos parar, nunca. Esse modo de viver é insustentável e imaturo. Destrói as bases do nosso caráter, cria uma onda generalizada de transtornos e pode levar ao colapso da lealdade e da solidariedade.

ESFORÇOS DIÁRIOS
No livro “Autoajuda: Uma Sociologia da Ingenuidade”, Pedro Demo lembra que as vantagens da vida moderna pouco contribuíram para melhorar o estado de espírito das pessoas. Por exemplo: dinheiro tem baixa correlação com felicidade. O amor romântico não é decisivo para uma sensação de felicidade. A saúde, embora importante, também apresentou fraca correlação com felicidade. E o enriquecimento de uma nação não eleva na mesma proporção a satisfação de seus cidadãos e cidadãs. Aliás, os países considerados “mais felizes” não são aqueles onde a autoajuda vende mais.
Ganhar mais ou ter um carro novo não resulta em tanta felicidade quanto se pode imaginar. Estudos mostram que o modo como nos comportamos é mais importante que bens materiais. Exemplos: dedicar tempo à família e aos amigos. Expressar gratidão. Envolver-se em atos de bondade. Desfrutar pequenos prazeres. Praticar atividade física em contato com a natureza. Ter objetivos de longo prazo… Isso exige esforços diários. O fato é que o capitalismo tóxico precisa que estejamos insatisfeitos e ansiosos. E a indústria da autoajuda se alimenta disso. Leia a 2ª parte deste artigo.