Em um mundo onde tudo se vende, até o moralismo possui valor comercial. Há moralistas em toda parte, atuando em setores diversos, pregando não o que acreditam ser o melhor para eles, mas sim o que acreditam ser o melhor para os outros. E um cobiçadíssimo subproduto desse moralismo onipresente é a felicidade, ou melhor, o ideal contemporâneo de felicidade. Sim, a felicidade virou grande negócio.
Desde a década de 1960, mais ou menos, a felicidade virou um negócio altamente lucrativo, que movimenta bilhões de dólares. Não seria exagero sintetizarmos em uma só palavra esse mercado excitante. A palavra? Autoajuda. Em forma de livros, vídeos, seminários, retiros espirituais, etc. (e bota et cetera nisso), a autoajuda é um menu. O menu da felicidade.
Tentáculo do consumismo, a indústria da autoajuda se apropria de conhecimentos extraídos das religiões, das ciências e das artes e os simplifica ou deturpa. Mas seus principais pilares são a mídia sensacionalista e a psicologia positiva. O sensacionalismo em geral apoia a fantasia do resultado fácil; e a psicologia positiva é hoje a base teórica da autoajuda.
RASO E RARO
Os debates sobre autoajuda são raros e rasos. De modo geral, não saem do gostei-não-gostei; da bobagem-não-bobagem; da necessidade-não-necessidade. Há uma paleta de clichês à disposição: gurus falando sobre campos energéticos, vibrações e divindades; acadêmicos divulgando “a nova era do pensamento positivo”; e cronistas zombando disso tudo com argumentos frágeis.
Por outro lado, queiramos ou não, somos dependentes. Não só porque nascemos entregues aos cuidados dos outros como também porque viver implica conviver. Ninguém está livre de precisar ser ajudado. Nesse sentido, o eremita autêntico é pura ficção. Mesmo se conseguisse isolar-se completamente, ainda assim teria de existir na natureza, alimentar-se dela, conviver com ela.
Precisar de ajuda é inescapável, portanto. Isto, sem desconsiderar que ajudas podem criar dependências. O raciocínio é análogo ao do assistencialismo. O assistencialismo tem menos efeito quando não constrói uma autonomia para o sujeito ajudado. Além disso, nem toda ajuda de fora é eficaz. Por exemplo, seu melhor amigo não pode te ajudar muito quando o seu problema for você mesmo.
EMOÇÕES DECISIVAS
Neste ponto, precisamos de concordância sobre o seguinte: é impossível entendermos a nós mesmos com perfeição. Os críticos da autoajuda parecem não levar em conta que a maioria das pessoas não pode pagar por uma psicoterapia; e não entendem que a primazia da consciência crítica não garante o equilíbrio emocional. Ah, claro, as emoções são decisivas em nossa existência.
As emoções nos permitem elaborar sentidos, esperanças, desejos, crenças e crendices. Mais: as emoções meio que controlam nosso comportamento. E nem a ciência clássica nem a teoria crítica têm condições de nos satisfazer plenamente como indivíduos. Por um motivo muito simples: o conhecimento científico ainda não foi capaz de resolver questões subjetivas da “arte de viver”.
Durante séculos, as ciências usaram a etiqueta “alienação” para classificar o pendor natural das pessoas para a busca do que elas acreditam ser a felicidade. E os gurus da autoajuda, em vez de nos incentivarem a seguir o que a realidade parece ser, pedem que sigamos o que gostaríamos que a realidade fosse. Assim, fica difícil. Assim, o autodesenvolvimento é praticamente impossível.
ESTADO DE ESPÍRITO
Estudos sociológicos, no entanto, têm sugerido que a psicologia positiva ajudou a criar um clima de otimismo tão generalizado quanto falso. Um dos achados mais conhecidos da psicologia positiva, estruturados pelo psicólogo americano Martin Seligman, foi descobrir que as muitas vantagens da vida moderna pouco contribuíram para melhorar o estado de espírito das pessoas.
Eis alguns resultados das pesquisas empíricas da psicologia de Seligman, organizados pelo sociólogo Pedro Demo, autor de “Autoajuda: Uma Sociologia da Ingenuidade Como Condição Humana“:
1) Os impactos de eventos fortes ou devastadores na vida das pessoas não duram mais que três meses;
2) Riqueza tem baixa correlação com felicidade.
3) O enriquecimento das nações desenvolvidas não elevou na mesma proporção a satisfação pessoal.
4) Grandes aumentos na remuneração podem impactar a satisfação profissional, mas não aqueles aumentos médios graduais.
5) O relacionamento amoroso não é decisivo na constituição de uma sensação de felicidade.
6) A saúde, embora importante, apresenta fraca correlação com felicidade também.
“BE HAPPY”
Esses dados, publicados no início dos anos 2000, excitaram ainda mais o já super dinâmico mercado de autoajuda. O documentário “Happy” (2011), produzido pela filantrópica Creative Visions, ilustra bem os conceitos da psicologia positiva de Martin Seligman. O diretor Roko Belic rodou o mundo para tentar compreender o que ele chamou de “a emoção mais elusiva da humanidade”. E fez a seguinte pergunta a pessoas de várias nacionalidades, classes e faixas etárias: “O que faz você feliz?”.
Desde o início, esse documentário apostou em um movimento global em prol da felicidade. As histórias e os depoimentos coletados incentivam o engajamento. Neste ponto, vale lembrarmos a canção “Don’t worry, be happy”, de Bobby McFerrin, que diz: Em toda vida, temos problemas/ Mas quando você se preocupa, eles se multiplicam/ Não se preocupe, seja feliz agora!
“FOR DUMMIES”
Na origem, porém, a indústria da autoajuda não é “social”. Na verdade, ela é causa e consequência do individualismo (e do imediatismo) da sociedade hiper-tecnológica. Trabalho, saúde, estética e relacionamentos são as “disciplinas-chaves”, das quais nascem aconselhamentos do tipo “how to”: como liderar, como educar os filhos, como emagrecer, etc. em versões básicas ou for dummies.
Os pregadores da autoajuda, que já ocupam todos os espaços de interação, não admitem que nenhum ser humano sadio tem condições de corresponder ao que suas cartilhas sugerem para que a tal felicidade seja alcançada. (O variado menu da autoajuda, aliás, atende por esse nome: felicidade.) Afinal, a repetição de ideias motivadoras tem efeito ou só serve para enriquecer os pregadores?
Pouco se sabe a respeito disso até o momento. A autoajuda é um fenômeno cultural ainda pouco estudado. Talvez por isso as críticas a ela costumam ser tão genéricas quanto as afirmações feitas por gurus questionáveis. Mas há algumas fundamentações. Pesquisadores de diversas áreas têm mostrado que a autoajuda positivista não se sustenta em pesquisas realmente sérias. Leia a 2ª parte deste artigo.