Toda viagem é uma interação com o desconhecido, mesmo quando o destino nos parece previsível. Minutos de metrô rumo a um museu ou meses de planejamento para desembarcar no interior do Vietnã, não importa. Jamais saberemos exatamente o que nos espera. Aliás, a vida seria muito sem graça sem o imprevisto, por mais que nossas mentes auto-programáveis se iludam com certezas incertas. [No fundo, toda viagem é uma bagagem, porque nossos embarques e desembarques ajudam a enriquecer nossa bagagem pessoal.]

Toda viagem é movimento. Extrapola as noções de fronteira, bandeira, hino, moeda, idioma e até as leis da física (risos). Quem viaja, de fato, transita. Abandona (ou deveria abandonar) provisoriamente as suas intolerâncias e ressentimentos a fim de praticar o olhar e a escuta. Quem realmente transita, não fica estático, nunca. Ao contrário, vence a inércia, descentraliza-se, toca as bordas, sente a terra, visualiza o universo.
CULTURA E AMPLIAÇÃO
Toda viagem é ação cultural. Envolve encontros e desencontros, sorrisos e despedidas, conceitos e preconceitos. Sinto que nós, brasileiros, estamos aprendendo a aceitar quem somos e como somos porque nossa cultura possui uma diversidade diferente da diversidade de outras culturas; porque, no fundo, cultura nada mais é do que a arte de viver de um modo bem específico – um modo de viver que é tão herdado (atavicamente) quanto escolhido (conscientemente).
Toda viagem amplia os sentidos: perceber e ouvir mais vivamente, olhar e enxergar com mais intensidade, degustar ou tocar com mais atenção, etc. Com o corpo e a mente dispostos a novas experiências somos capazes de registrar mais dados que de costume, sabe-se. Então, sinta o frescor e a surpresa de um lugar diferente. As coisas mais comuns parecem extraordinárias, e vice-versa.
INTERROGAÇÃO E SINGULARIDADE
Toda viagem é interrogação. Nossos apetrechos exalam dúvidas. Por que as coisas aqui são como são? Por que a minha cidade não é tão bonita e organizada quanto esta? Por que não mudo para cá, para lá? Por que não mudo de forma alguma? Porquês, porquês, porquês. Torrentes que não se calam nem diante das nossas fugas e dos nossos pretextos. Como é possível? E assim prosseguimos, sem perder o aqui-agora.

Toda viagem é única. As viagens são como a individualidade: não se repetem tal e qual. Você, que, como eu, desembarcou várias vezes no mesmo lugar, me diga: foi a mesma coisa? Até as aves de arribação acabam descobrindo rotas diferentes para pousos inéditos. “O pássaro é um vento orquestrado/ O pouso pesa o que foi voado”, escreveu Fabrício Carpinejar em “Biografia de Uma Árvore“, livro através do qual certa vez viajei.
LEMBRANÇA E SONHO
Toda viagem é lembrança. Segue conosco aonde formos. Ajudam a compor o acervo imaterial que levaremos conosco até o derradeiro instante. Mas, para maior autenticidade, uma viagem precisa também de retorno (feedback) e de volta. A volta a um ponto de origem ou a um ponto qualquer daquela viagem mais ampla (e sem volta) que é a “Nossa Grande Jornada Juntos” no tempo.
Toda viagem é um sonho. Podemos até induzi-lo com um pouco de imaginação. Imagine-se agora saindo de casa para uma viagem sem rota nem destino. Cair no mundo como aqueles personagens errantes dos filmes on the road. Feche os olhos, acompanhe seus passos, observe a trajetória. O próprio viajar é a melhor parte da viagem, mesmo que ela não se realize, mesmo que ela exista apenas na sua mente.

VIRTUDE E VOLUME
Toda viagem é uma bagagem (independentemente da Gravidade ou do corpo que vai). Em seu “Ensaios“, Francis Bacon escreveu: “Não posso almejar riqueza maior que a bagagem da virtude”. A bagagem está associada também ao senso de dever, ao peso das preocupações e às experiências acumuladas, mas às vezes não tem nenhum sentido figurado. Indica simplesmente que todos temos uma história pessoal com a qual lidar.
Toda viagem, no fundo, é um percurso para um destino chamado Nós Mesmos. Portamos uma bagagem volumosa (no mais amplo sentido possível), que não pode ser despachada, nem roubada, nem perdida, nem trocada. A nossa partida é um desaparecimento para quem fica e um reencontro para nós, que estamos indo. Um reencontro com o nosso eu mais profundo, um Eu Indivisível capaz de conhecer alguma coisa simplesmente porque já conhecia alguma outra coisa antes.