Os noticiários aqui na Itália não são exatamente animadores, mas o modo como os jornalistas de TV estão se comportando é interessante. Os âncoras dos telejornais fazem o que podem para não demonstrar desesperança. Nas comunicações dos fatos: tentam modular um tom grave e vigilante na voz, mesmo diante de dados aterrorizantes; enfatizam as conversões de empresas em fábricas de produtos e equipamentos médicos para o combate; mostram voluntários trabalhando nas construções/adaptações de hospitais; homenageiam os profissionais da saúde, todos já no limite de suas forças, buscando energias até onde não há; e realçam o crescente número de voluntários.
A veterana âncora do TG2 (RAI-2) Maria Concetta Mattei descreveu os profissionais da área de saúde e cientistas como “pessoas que trabalham noite e dia para nos tirar deste pesadelo”. Até em Marte você perceberia o reverberar da palavra pesadelo dentro daquela chamada. E bem naquele momento uma amiga me escreveu por Whatsapp, preocupada. Seu marido, que trabalha aqui em Florença como motorista do Samu (digamos assim), foi mandado em missão na parte de trás da ambulância, ao lado de pacientes com sintomas evidentes de coronavírus, e não por acaso ela estava muito preocupada com o risco de contágio dele, apesar das precauções e proteções. O que dizer? O slogan de guerra, estampado nos muros, portas e janelas, me acode:
Andrà tutto bene… / We’ll be ok… / Vai dar tudo certo. Vai?
FRAGILIDADES ELETIVAS
E o pesadelo ocorre em um momento de muitas fragilidades. Fragilidade em termos de liderança global, principalmente. Que azar termos logo agora dois egocêntricos cínicos (Trump e Johnson) conduzindo os dois países que foram decisivos na Segunda Guerra Mundial para vencermos os nazifascistas, uma das nossas piores provações como espécie nos últimos tempos. Aqui, na Itália, o primeiro-ministro Giuseppe Conte e os partidos de centro-esquerda que compõem a base de apoio ao seu governo estão trabalhando à beira da exaustão. “Estamos construindo minuto a minuto um tipo de conhecimento em gestão de crise que simplesmente não existia”, disse Conte em rede nacional. O compromisso com a verdade parece preservado, pelo menos.
A Itália ter-se arrependido dos (e assumido publicamente os) erros de estratégia do início da pandemia é fato relevante. Quando reconhecemos os nossos erros, temos mais chances de aprender e avançar/recomeçar. O inimigo é claramente muito mais poderoso do que todos nós imaginávamos, mas estamos em plenas condições (ainda) de “reajustar a rota da vida”, como sugeriu o Papa Francisco naquela missa em atmosfera lúgubre sexta-feira. Embora eu não seja religioso, empatia nunca me faltou. Tentei me colocar na posição de Francisco e concluí que celebrar aquela missa para a maior multidão dispersa de todos os tempos foi um ato de coragem imprevisto.
O INIMIGO MUTANTE
Em casa, diante dos fatos, desde os mais trágicos até os mais sensivelmente animadores, a gente se sente apertado, e não é questão de espaço físico apenas. Quem está escalando essa montanha íngreme do confinamento forçado sabe o que estou dizendo. Estamos sendo convidados e engolir, literalmente, a mais concreta sensação de impotência desde o fim da Guerra Fria. Então, evite deixar-se levar por alguma contradição insolúvel do tipo “se tudo neste mundo é demagogia, então basta eu escolher uma demagogia na qual acreditar a partir de agora”. Não, não é o momento para isso. Te digo por quê: estamos em combate. Em um combate, é preciso clareza sobre quem é o verdadeiro inimigo, caso contrário…
E qual é o verdadeiro inimigo, afinal? No macro, o inimigo é tudo o que (ou todo aquele/a que) puder contribuir para causar mais mortes do que as já calculadas pelos epidemiologistas. Estamos sendo testados em provações duríssimas nesse sentido. No específico, o inimigo é o vírus, primeiramente (a recessão é certa, mas virá depois). Ainda não há uma perspectiva clara de vacina ou cura. A população da Itália se encontra em um isolamento rigoroso e prolongado. Gráficos são cruéis, nessas horas. Esperamos aqui, como nunca, “a péssima notícia boa” sobre o pico da curva de contágios. Enquanto isso, os óbitos já passam de 10 mil e o sistema de saúde continua sobrecarregado. Arrepiam-me as sirenes das ambulâncias, único ruído substancial que se pode ouvir daqui de casa, no vazio centro histórico de Florença.
OUTROS OBSTÁCULOS
Sim, não conhecemos ainda todas as artimanhas do inimigo. O vírus continua viajando por aí sem ser molestado porque é impossível molestá-lo prontamente. O conhecimento sobre o combate vem sendo construído empiricamente dia a dia desde que a China finalmente resolveu alertar o mundo para o que estava acontecendo em seu território. E como se não bastassem os tantos obstáculos que precisamos vencer, os brasileiros ainda têm de enfrentar um aloprado autorreferente, unicamente preocupado com a reeleição em 2022. Se a economia não bombar (fator impensável antes mesmo do surgimento do vírus), não há como ser reeleito, e por isso ele está desesperado e se lixando para “o resto”.
Um presidente desprovido de valores humanísticos e científicos é tudo o que não precisávamos em um momento como este. A boa notícia é que, após tantas burrices renovadas, parece que o percentual de eleitores dispostos a acreditar em abstrações como “combate ao comunismo” ou em demagogias como “resgate de valores morais da família patriarcal” vem caindo vertiginosamente. Mas que mundo é esse em que precisamos defender incansavelmente o óbvio? Em que precisamos gastar um estoque importante de energia para remover obstáculos que não deviam estar ali onde estão?
LIÇÃO ITALIANA
A pandemia se espraia por todos os continentes e, mais que nunca, é o momento de levar a sério o que os meios políticos e científicos chamam de “lição italiana”. Todos os países do mundo têm a obrigação de não repetir o fiasco inicial da Itália, que subestimou absurdamente o potencial do inimigo. O resultado é que estamos agora lidando aqui com uma realidade que antes só era acolhida pela ficção. O intercâmbio de informações entre os países sobre as medidas adotadas (e por adotar) é intensivo. Estudam-se as decisões nacionais para aperfeiçoar os processos e construir medidas implementáveis universalmente, quem sabe.
Ontem mesmo, a expressão “à italiana” (referente a “ao modo de ser e de pensar dos italianos”) estava mais associada a prazeres que a rigores. Os italianos são mestres em curtir as coisas aparentemente pequenas e simples da vida, e a Itália estará sempre entre os lugares mais desejados do mundo para se visitar, por sua beleza e história. As inflexibilidades alemãs, por exemplo, aqui não se encontram. Hoje o “à italiana” tem sido usado no mundo todo como sinônimo de “endurecer a batalha contra o vírus como fizeram os italianos”. A Itália vista como “país realmente confiável” seria uma novidade dentro da combalida/desintegrada Comunidade Europeia?
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