Os dicionários te dirão que nostalgia é a saudade de alguma coisa, de uma condição que você deixou de possuir, de um lugar que te traz boas lembranças, de um episódio que você gostou de ter vivido, enfim. Porém, quando resulta em apego excessivo ao passado a nostalgia pode perturbar o comportamento, turvar a percepção do presente e bloquear o imaginário. Então, se você tem vontade de começar a fazer algo realmente efetivo a respeito da sua vida, aceite que a (sua) nostalgia tem a ver com futuro também.
IMPLICAÇÕES
A palavra tem implicações políticas, acredite. Por exemplo, alguns brasileiros no momento vivem a nostalgia de que podemos voltar a (reviver, reproduzir) situações de cinquenta anos atrás, quando se caçavam “comunistas” e os valores familiares eram, pela ordem, masculinos, heterossexuais e focados no disciplinamento militar de crianças e jovens. Outros tantos brasileiros, talvez a maioria, sonham com aquele Brasil recente no qual alguma distribuição de renda “finalmente” se fez sentir.
Nenhuma dessas duas vertentes de pensamento está correta, do ponto de vista da sanidade mental. Por quê? Porque ambas se amparam em uma ideia de passado que não tem como se repetir tal qual foi. [Vamos combinar: tudo o que é passado não pode ser revivido “tal qual”. Mais: não poderá ser revivido nem mesmo de forma adaptada, porque a adaptação em si já remove o “tal qual”.] Algumas ideias nossas sobre o passado resistirão, talvez, mas somente porque a nossa mente assim quer.
CORONA
Talvez você ainda esteja em quarentena (aí no Brasil) quando ler este texto. Aqui, na Itália, diferentemente, já recuperamos uma boa fatia da liberdade de ir e vir, mas com restrições. Menciono o coronavírus não porque eu queira abordar o assunto, mas porque a nostalgia nunca esteve tão presente em nossas vidas quanto agora. Afinal: perdemos a (boa) vida que acreditávamos ter; afinal, perdemos as possibilidades que nem sabíamos que tínhamos. Perdemos mesmo sem ter perdido, dizem por aí.
Tantas especulações sobre como será o mundo de agora em diante só nos faz querer mais e mais a vida idílica que, supostamente, nos dava uma sensação de felicidade. O fato é que aquela vida que hoje aceitamos que era “tão legal” não existirá mais. Será outra. Boa ou má? Melhor ou pior? Ninguém sabe. Devido às tantas angústias, depressões e revoltas deflagradas pela Era Pós-Corona, as nostalgias não param de florescer por aí, para o bem e para o mal.
PENSANDO DIFERENTE
Você deve ter – presumo que todo mundo tenha – algum mecanismo de conservação do passado, seja ligando-o a objetos concretos (um jarro, uma bicicleta, um livro, uma lapiseira, etc.), seja ligando-o a objetos cuja informação transportada através dos tempos é mais abstrata e/ou interpretativa, como no caso de fotografias, vídeos, canções, aromas, plantas, paisagens – colecionismos, enfim.
Em algum momento você deve ter se perguntado: “Por que tenho me empenhado tanto em tentar fixar o que passou?”. Até eu, que não sou nada passadista, eu, que continuo achando que o presente é meu melhor presente, tenho me perguntado isso. Ninguém está livre do problema de como e por que reter um passado que não se repetirá jamais. Daí andei lendo uns estudos experimentais sobre a nostalgia e cheguei a uma conclusão inesperada.
INESPERADA?
Minhas viagens nostálgicas – uma das mais sólidas a que me dou o direito são aquelas ligadas à música – não têm servido apenas para me causar um pouco de tontura virtual, mas para fortalecer minha estabilidade interna. Mais: servem para me preparar para aproveitar novas oportunidades que eu ainda nem tinha imaginado. Sabe por quê? Porque a nostalgia não se refere somente ao passado. Ao contrário, ela é uma espécie de plataforma de lançamento para o nosso futuro.
Além de nos fornecer uma âncora física e psíquica a cada vez que a paisagem geral muda, ela nos ajuda a nos concentrarmos naquilo que é mais precioso para cada um de nós. A nostalgia tem poder transformador. Mas, para que esse poder transformador se revele, precisamos remover o lixo acumulado em torno dessa palavra ao longo dos séculos (a partir do século 5, principalmente). Ao longo do tempo a nostalgia foi associada, necessariamente, a dor, sofrimento, inutilidade e… desejos reprimidos. Que horror. É preciso rever isso.
REDES SOCIAIS
As redes sociais facilitaram o resgate das nostalgias: de páginas dedicadas a “coisas dos anos 1950 que somente quem foi criança nos anos 1980 poderá entender” a “como organizar os objetos que você ama de maneira que eles te façam sentir-se melhor em momentos difíceis”. Sim, quando tudo é possível, o nada e o vazio também compõem possibilidades. Estudos recentes indicam que a nostalgia ajuda a formar nossa identidade, mas somente se formos capazes de liberá-la dos lixos ideológicos e das sucatas falaciosas.
Não é tão difícil aceitar que a imersão no passado pode dar um belo reforço em nosso senso de pertencimento e em nossa autoconfiança. Fácil aceitar também que a maioria das pessoas tende a resgatar mais os eventos (que elas consideram) positivos e menos os negativos. Se seu chefe te avalia injustamente você começa a se ver de um modo ruim. Por outro lado, estudos demonstraram que você pode compensar as dúvidas a respeito de si mesmo priorizando a lembrança de situações nas quais você, em vez de se deixar abater, se superou.
O QUE (NÃO) ACONTECEU
As nossas experiências, no entanto, não têm a ver somente com algo que aconteceu. Na verdade, todas as experiências são matérias primas que usamos para modelar a nossa identidade, o nosso “eu”. A nostalgia, portanto, é apenas um dos meios de recuperação dessas matérias primas; ela é a porta de acesso ao nosso espaço íntimo, interior. Algo muito parecido com afundar a mão na argila para esculpir uma forma qualquer ou simplesmente para sujar as nossas mãos “lisinhas”.
O objeto de nossas nostalgias – uma forma, um conceito, um sabor, uma roupa, uma festa, etc. – não é importante porque sim. É importante porque nos dá acesso a uma série de crenças, desejos e emoções. A nostalgia pode potencializar a nossa capacidade de colocar ideias em prática (ou a capacidade de praticar ideias nas quais acreditamos). Mas lembre-se: nostalgia só é saudável quando excêntrica (muito pessoal) e apolítica. Caso contrário, transforma-se em prisão.
Excelente reflexão Sergio. Ninguém pode se dar ao luxo de voltar ao passado. Somos um planeta que urge por mudanças radicais. A pandemia foi somente um primeiro alerta. Muitos ainda virão. Não há mais volta. Cabe a cada um assumir responsabilidade pela regeneração do nosso judiado meio ambiente. Só nos resta crescer com responsabilidade ou tudo que está escrito nos romances de ficção científica podem começar a acontecer. A música, a leitura e a escrita salvam a nós mesmos e a quem reserva um minuto de suas vidas para nos ouvir ou ler! Obrigada
Daniela, quem bom que me escreveu. Sim, as artes, tanto quanto as ciências, são luzes valiosas em qualquer túnel. Bjo, Sergio
Sérgio, como sempre você nos coloca para pensar. Belo texto, boa provocação. Na minha opinião a humanidade irá esquecer em médio prazo tudo tudo o que estamos vivendo com o Corona. Claro que mudanças haverão, em em quase todas as dimensões da troca da vida humana. Mas como sempre ocorreu na história, nós nos adaptaremos. Sou otimista com o futuro. O homem de hoje é muito mais humano que o da idade média. A inteligência trouxe o conforto inimaginável um século atrás, todo dia, toda hora, em qualquer lugar do planeja tem talentos fazendo algo para servir a si e seus semelhantes. O homens ruins são exceções. Toda depressão e nostalgia servirão para reforçar o valor que temos como seres sociais nos tornar mais humanos , assim caminhará a humanidade.
Cícero, obrigado pelo feedback. Também sou/estou otimista. A adaptabilidade continuará sendo o motor da sobrevivência e do aperfeiçoamento humanos. Abraço, Sergio.
Amei este texto. Recebi um vídeo outro dia do Vinicius e do Toquinho cantando Itapuã. Me deu um aperto no peito, uma saudade. Depois de ler o seu texto percebi senti foi nostalgia.
Que bom, Palma. O importante é que a gente continue sentindo, seja lá o que for, e atentos ao que sentimos. Bjs