Conversa fiada, papo furado, lengalenga, lero-lero, lorota, tagarelice, bazófia, jactância… Não importa o termo ou a expressão, o fato é que a conversa mole é um dos traços marcantes da nossa cultura. Ela cumpre o papel social de “inimiga” da verdade (risos). E não isenta ninguém (todos somos – ou fomos – influenciados por ela de alguma forma), recebe a contribuição de todos nós, dia após dia, para continuar existindo, e, não por acaso, tem ajudado a eleger e derrubar políticos.
INDIFERENÇA
Em “On Bullshit”, O filósofo Harry Frankfurt defende – por um ponto de vista anglo-saxônico, obviamente – que a conversa fiada “é uma indiferença em relação à verdade”. Segundo ele, muita falação vazia mina pouco a pouco a nossa capacidade de distinguir o verdadeiro do falso; o possível do impossível; o claro do obscuro. “Até o silêncio seria mais interessante do que um papo furado”, escreveu.
A primeira edição do seu livro é de 1986, quando as fake news não eram produzidas com a instantaneidade, a criatividade e o mau-caratismo de hoje. Passados mais de trinta anos, a tendência ao disparate promete tudo, menos retroceder; e a tal da “realidade” tem sido atingida por conceitos muito mais esquisitos do que aqueles que me me foram ensinados na faculdade nos anos 1980.
ASNEIRAS
Stefano Zorzi, empreendedor italiano residente em Copenhague, desafiou a visão de Harry Frankfurt em um artigo de 2018 dizendo que o papo furado pode nos ajudar a entender a vida. Na visão de Zorzi, nem sempre podemos saber o que é a verdade antes de descobri-la e verbalizá-la: “Se Galileu Galilei tivesse preferido o silêncio à especulação, nunca teria dado bola para as ideias heliocêntricas de Nicolau Copérnico, que lhe serviriam de base”.
Concordo com ele também em outro ponto: tratar bobajadas como ruídos vulgares de um mundo decadente é uma atitude arriscada, para não dizer soberba. Aceitemos: o que chamamos de progresso não é uma subida suave e contínua em direção ao pico mais alto. Ao contrário! O progresso é muito volúvel. Lidar com fatos implica processar também montanhas de asneiras.
MESMO JOGO
Se você pensar bem, os mentirosos e os honestos jogam em times rivais, mas ambos fazem parte do mesmo jogo. A propósito, você já percebeu que…
- tanto os mentirosos inocentes quanto os vigaristas profissionais juram priorizar a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade?
- os maliciosos têm consciência da verdade mas fazem o que podem para escondê-la?
- que a maioria dos políticos não está nem aí para os fatos?
- que as pessoas parecem confiar cegamente em suas capacidades de não se deixarem enredar por uma conversa mole?
Frequentemente ouço em tom mimimi: “Ah, mas é tão gostoso papear à toa, não?”. Talvez. Depende. Acho que deixa de ser “gostoso” quando você perde a capacidade de valorizar o que realmente tem importância para você, individualmente; ou quando você passa a reproduzir as bogagens dos outros sem nem perceber.
[Devo confessar: morro de preguiça de conversas moles do tipo “especulando sobre a vida alheia”, por exemplo. Me cansa instantaneamente. Dou um jeito de evaporar-me.]
“IDEAS”
Agora veja que interessante: em março de 2019, o canal “Ideas” do Ted.Com publicou uma reportagem da qual participaram a epidemióloga Emma Frans e a alta executiva Margaret Heffernan. Título: “How to read the news like a scientist” (“Como ler notícias como um cientista”). Claro que confrontar ciência e conversa mole não nos levaria a lugar nenhum, mas os seis pontos listados na tal reportagem são relevantes porque
- me parecem perfeitamente praticáveis no dia a dia;
- podem nos livrar de muitos micos e dissabores nos disse-me-disse das redes sociais, por exemplo;
- e porque nestes tempos de fake news, falação e grosseria é altíssimo o risco de sermos iludidos por uma estupidez (ou má fé) qualquer.
CETICISMO
Então, quer saber quais são os seis tópicos levantados na reportagem do “Ideas”? Aqui vão três:
- Cultive o ceticismo. Questione. E aceite o fato de que muito do que você lê, ouve e assiste pode ser tanto verdadeiro quanto falso; ou pode ficar entre esses dois extremos;
- Descubra de onde partiu a história. Em ciência, os pesquisadores têm que declarar os possíveis conflitos de interesses antes de publicar um conhecimento novo. Nas redes sociais, diferentemente, a gente não sabe ao certo quem é quem, exceto os amigos que você conhece e confia. Então, busque o original, identifique o produtor e faça uma rápida pesquisa sobre essa tal pessoa ou organização.
- Cuidado com o Efeito Halo (halo é aquele círculo de luz na cabeça dos santos). Efeito Halo é a tendência a aceitar como “necessariamente válido” tudo que é dito por uma pessoa que você admira muito;
EVIDÊNCIAS
Mais três:
- Olho nas evidências. Por exemplo, você encontra um post sobre um estudo dizendo que beber vinho é melhor para a saúde do que frequentar academias. Bem, essa descoberta é irrelevante se 99% dos outros estudos a respeito mostrarem o contrário.
- Cuidado com as info que você escolhe. Outro viés cognitivo nosso é o da confirmação. Significa que temos mais probabilidade de selecionar informações que se encaixam no que já acreditamos (ou queremos acreditar). Combata esse viés.
- Saiba a diferença entre causa e correlação. Se duas variáveis crescem (ou diminuem) simultaneamente não significa que uma é causa da outra. Por exemplo: há um aumento dos crimes violentos em seu bairro e um aumento do desemprego na sua cidade. As duas variáveis são correlatas, mas uma não necessariamente é causa da outra.
Sim, a conversa mole é um dos traços marcantes da nossa cultura. E você? Como você lida com as conversas fiadas?