A palavra trauma nos traz à mente histórias de ex-soldados com comportamentos estranhos tentando lidar com as feridas emocionais decorrentes de suas experiências horrendas no front. Infelizmente, as situações com potencial traumático são bem mais variadas do que imaginamos. Violências, privações, ditaduras, eventos catastróficos (secas, inundações, desabamentos, incêndios, etc.) e perdas repentinas de pessoas queridas estão por trás de muitos traumas por aí, mas também a exposição contínua a negativismos e abusos (físicos e psicológicos). O fato é que traumas podem ter efeitos perturbadores no cotidiano.

O QUE É TRAUMA?
Em termos técnicos, o trauma é uma ferida mental, uma ruptura (ou fragmentação) duradoura no cérebro causada por experiências complicadas e dolorosas. A noção usual de trauma normalmente evoca desgraças: fomes, guerras, migrações em massa, violência sexual, crianças negligenciadas, desastres ambientais, acidentes fatais. “Essa visão é equivocada”, alerta o dr. Gabor Maté em “The Myth of Normal: Trauma, Illness, and Healing in a Toxic Culture” (2022): “Alguém sem marcas traumáticas é um ‘fora da curva’. O trauma permeia todas as culturas, todas as classes”.
Trauma não é o evento em si, mas sim o que acontece em nossa psique a partir do momento em que o vivenciamos. Essa lesão no sistema nervoso geral (cérebro, mente e corpo) reativa a experiência traumática ao menor “sinal de perigo” (mesmo muito tempo depois de ocorrido o fato). O “sinal de perigo” é apenas um dos gatilhos. Na verdade, qualquer percepção que remeta a pessoa de volta à origem do trauma – um lugar parecido, um cheiro, uma palavra, um sentimento, etc. – pode deflagrar reações como emoções incontroláveis, sensações físicas intensas e atitudes agressivas.
EXEMPLOS E TIPOS
Exemplos de traumas graves: sobreviver a um sério acidente de trânsito; perder a casa e os pertences em uma enchente; ser espancado(a) por um assaltante; ser estuprado(a). Mais exemplos (agora de traumas crônicos): ser demitido(a); ser traído(a); ouvir desde sempre os teus pais te chamarem de idiota imprestável; sofrer violências na infância e adolescência. Todos esses processos podem não ser traumáticos por si mesmos, porque há quem seja capaz de seguir em frente. No entanto, esses processos, quando traumatizam fortemente, alteram a visão de mundo da pessoa, que passa a se comportar de maneira errática e defensiva.
O dr. Paul Conti, autor de “Trauma: A Epidemia Invisível” (2021), distingue os traumas em três tipos: agudo, crônico e vicário. O “trauma agudo” resulta de ataque cruel, lesão incapacitante, testemunhar mortes violentas, por exemplo. “Trauma crônico” é sofrer abuso sexual constante na infância, suportar preconceitos a vida toda, sofrer assédio moral no trabalho por anos. Quem sofre de trauma crônico, segundo Conti, só percebe muito mais tarde as péssimas circunstâncias em que vive (ou viveu). Já o “trauma vicário” é específico: afeta principalmente profissionais que prestam assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade, com as quais desenvolvem uma relação de afeto.

SINGULARIDADES E VERGONHAS
Cada caso é um caso. Tudo depende de como o evento agride tuas emoções, teus valores, tuas memórias, teu corpo. O trauma agudo é mais fácil de identificar, porque a vítima não tem como negar que sua vida de sobrevivente de um tsunami nunca mais será a mesma. Diferentemente, as vítimas de trauma crônico tendem a negar as ações degradantes que lhes foram impostas ao longo do tempo. Na maioria dos casos, não conseguem explicar o porquê de reagirem de maneira “esquisita” a situações atuais que têm pouco ou nada a ver com os acontecimentos do passado.
Por que tanta hesitação em admitir experiências traumáticas? Primeiramente, porque o trauma provoca uma vergonha intensa em relação ao ocorrido. A vítima se convence de que tudo pioraria se reconhecesse o problema e buscasse ajuda. Essa vergonha grudada no fundo de suas almas as leva a se autoflagelarem, internalizando conclusões insensatas, como “a culpa foi minha”, “ninguém acreditará em mim”. O problema é que os traumas, principalmente os crônicos (prolongados), resistem ao tempo e seus impactos podem causar síndromes, como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
O comportamento padrão da vítima é fazer o que parece mais fácil e seguro no momento em que o problema vem à tona de novo: empurrar o temor e a vergonha para debaixo do tapete. Esse mecanismo é ainda mais rígido em quem sofreu trauma crônico (o mais difícil de identificar). Os pensamentos e os sentimentos da experiência passada inibem a racionalidade. Uma vez instalado o complexo traumático, as chances de a vítima sofrer de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) aumentam muito. [Atenção: trauma e TEPT não são a mesma coisa. O segundo decorre do primeiro.]
As pessoas expostas a um fato horrendo começam a apresentar medo, impotência e horror em determinadas situações. Passam a ter pesadelos, flashbacks e a sensação de que o evento traumático está ocorrendo de novo aqui agora. Passam a evitar pessoas, lugares, pensamentos e sentimentos associados ao(s) episódio(s) traumático(s). “O enredo é claro”, observa Bessel Van der Kolk em seu ótimo livro “O Corpo Guarda as Marcas“: “O evento traumático passou, mas ele continua a ser reproduzido em lembranças que se renovam incessantemente”.

VISLUMBRES E SOLUÇÕES
Com sistemas de diagnósticos cada vez mais sofisticados, os profissionais da área de saúde agora podem criar métodos e fazer experimentos com base na neuroplasticidade natural do cérebro. Van der Kolk vislumbra três caminhos para o tratamento: 1) Facilitar, por meio de diálogos, a compreensão sobre o que aconteceu para que as vítimas possam processar suas lembranças negativas; 2) Conforme o caso, prescrever medicamentos que interfiram nas reações inapropriadas; 3) Incentivar as vítimas a sentirem plenamente o próprio corpo (isso ajuda a mitigar raivas e desvalias, por exemplo.
“A maioria dos pacientes com os quais trabalhei se beneficia de uma combinação dessas três estratégias”, escreve Van der Kolk: “A terapia pela palavra, a compreensão e o restabelecimento do contato saudável com outras pessoas abrem perspectivas novas, enquanto os medicamentos auxiliam no desligamento dos sistemas de alarme interno hiperativados. No entanto, as marcas do passado podem ser transformadas mediante experiências físicas que restaurem o autodomínio”.