A palavra trauma nos traz à mente histórias de ex-soldados com comportamentos estranhos enfrentando uma batalha diferente: lidar com as feridas emocionais decorrentes de suas experiências horrendas no front. Infelizmente, as situações com potencial traumático são bem mais variadas do que imaginamos. Violências, privações, ditaduras, eventos catastróficos (secas, inundações, desabamentos, incêndios, etc.) e perdas repentinas de pessoas queridas estão por trás de muitos traumas por aí, mas também a exposição contínua a negativismos e abusos (físicos e psicológicos). Considere também que muitas vítimas sentem-se feridas em seus valores e emoções por causa de episódios bem menos dramáticos que esses. “Quem define se foi ou não um trauma é quem o sofreu”, afirma o psicólogo Marcio Alleoni. O fato é que traumas podem ter efeitos perturbadores no cotidiano. A boa notícia é que o conhecimento acumulado atualmente sobre o assunto facilita o processo de cura.
O QUE É TRAUMA?
A noção usual de trauma normalmente evoca desgraças: fomes, guerras, migrações em massa, violência sexual, crianças negligenciadas, desastres ambientais, acidentes fatais. Essas noções, porém, são limitadas e enganosas porque tratam o trauma como anormal, incomum, excepcional. É como se estivéssemos dizendo “existem os traumatizados” e nós, os “não traumatizados”, membros de uma maioria esmagadora e sortuda. “Essa visão é equivocada”, alerta o dr. Gabor Maté em “The Myth of Normal: Trauma, Illness, and Healing in a Toxic Culture” (2022): “Em nossa sociedade, é o contrário. Alguém sem marcas traumáticas é um ‘fora da curva’. O trauma permeia todas as culturas, todas as classes”. Em termos técnicos, o trauma é uma ferida mental, uma ruptura (ou fragmentação) duradoura no cérebro causada por experiências complicadas e dolorosas.
sexo exige o consentimento dos dois/ se uma pessoa está ali deitada sem fazer nada/ porque não está pronta/ ou não está no clima/ ou simplesmente não quer/ e mesmo assim a outra está fazendo sexo/ com seu corpo isso não é amor/ isso é estupro
Rupi Kaur, poetisa: trecho do seu livro de poemas “Outros Jeitos de Usar a Boca” (2017)
Trauma não é o evento em si, mas sim o que acontece em nossa psique a partir do momento em que o vivenciamos. Essa lesão no sistema nervoso geral (cérebro, mente e corpo) reativa a experiência traumática ao menor “sinal de perigo” (mesmo muito tempo depois de ocorrido o fato), mobilizando os circuitos cerebrais danificados e produzindo uma quantidade absurda de hormônios do estresse. O “sinal de perigo” é apenas um dos gatilhos. Na verdade, qualquer percepção que remeta a pessoa de volta à origem do trauma – um lugar parecido, um cheiro, uma palavra, um sentimento, etc. – pode deflagrar reações. Emoções incontroláveis, sensações físicas intensas, ações impulsivas e agressivas ou paralisia e inseguranças mil, por exemplo, são tão avassaladoras quanto incompreensíveis para as vítimas.
EXEMPLOS E TIPOS
Exemplos de traumas graves: sobreviver a um sério acidente de trânsito; perder a casa e os pertences em uma enchente; ser espancado(a) por um assaltante; ser estuprado(a). Mais exemplos (agora de traumas crônicos): ser demitido(a) em seguida a um discurso injusto e arrasador do chefe; ser traído(a); ouvir desde sempre os teus pais te chamarem de idiota imprestável; enfrentar extrema escassez após a falência total da própria empresa; sofrer violências na infância e adolescência. Todos esses processos podem não ser traumáticos por si mesmos, porque há quem seja capaz de seguir em frente (o que nem sempre significa que a emoção relativa ao trauma foi resolvida). No entanto, esses processos, quando traumatizam fortemente, alteram a visão de mundo da pessoa, que passa a se comportar de maneira errática e defensiva. Os mecanismos de defesa passam por negação, embotamento, rigidez e projeção (atribuir a outra pessoa seus próprios sentimentos).
O dr. Paul Conti, autor de “Trauma: A Epidemia Invisível” (2021), distingue os traumas em três tipos: agudo, crônico e vicário. O “trauma agudo” resulta de ataque cruel, lesão incapacitante, testemunhar mortes violentas, receber diagnóstico de doença terminal, por exemplo. As vítimas de trauma agudo geralmente têm consciência do que aconteceu e sabem que, a partir daquele momento, existirá um antes e um depois. “Trauma crônico” é sofrer abuso sexual constante na infância, suportar preconceitos a vida toda, sofrer assédio moral no trabalho por anos. Quem sofre de trauma crônico, segundo Conti, só percebe muito mais tarde as péssimas circunstâncias em que vive (ou viveu). Já o “trauma vicário” é específico: afeta principalmente profissionais que prestam assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade, com as quais acabam nutrindo uma empatia e uma compaixão fora do comum.
SINGULARIDADES E VERGONHAS
Cada caso é um caso. Tudo depende de como o evento agride tuas emoções, teus valores, tuas memórias, teu corpo. O trauma agudo é mais fácil de identificar, porque a vítima não tem como negar que sua vida de sobrevivente de um tsunami ou de um sequestro relâmpago nunca mais será a mesma. Diferentemente, as vítimas de trauma crônico tendem a negar as ações degradantes que lhes foram impostas ao longo do tempo. Na maioria dos casos, não conseguem explicar nem para si mesmas o porquê de terem passado a reagir de maneira “esquisita” a situações atuais que têm pouco ou nada a ver com o(s) acontecimento(s) que originaram o trauma. Confundem-se sobre o que sentem e têm dificuldade de expressar em palavras o que as perturba.
Por que tanta hesitação em admitir experiências traumáticas? Primeiramente, porque o trauma provoca uma vergonha intensa em relação ao ocorrido. A vítima se convence de que tudo pioraria se reconhecesse o problema e buscasse ajuda. Essa vergonha grudada no fundo de suas almas as leva a se autoflagelarem, internalizando conclusões insensatas, como “a culpa foi minha”, “ninguém acreditará em mim”, “o melhor é me calar”. O problema é que os traumas, principalmente os crônicos (prolongados), resistem ao passar do tempo e no longo prazo seus impactos podem causar síndromes pós-traumáticas. A mais conhecida é o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
CIÊNCIAS E INTERPRETAÇÕES
Três novas áreas científicas permitiram uma explosão de informações sobre os efeitos do trauma psicológico, dos maus-tratos e das negligências. Essas disciplinas recentes são a neurociência, que estuda como o cérebro respalda os processos mentais; a psicopatologia do desenvolvimento, dedicada ao impacto de experiências adversas sobre o desenvolvimento da mente e do cérebro; e a neurobiologia interpessoal, voltada para a influência do nosso comportamento sobre as emoções, a biologia e a mentalidade das pessoas com quem convivemos. Diferentemente de cem anos atrás, quando Freud e Jung ofereceram interpretações à época inspiradoras sobre os traumas, o conhecimento científico a respeito avançou muito, felizmente.
Hoje sabe-se que o trauma compromete a área cerebral que transmite a sensação física (corpórea) de estar vivo. Essas mudanças cerebrais explicam por que as pessoas traumatizadas veem ameaças onde quase sempre não há, o que afeta seriamente seus relacionamentos e rotinas; ajudam a entender também por que as vítimas apresentam repetidamente as mesmas confusões e o mesmo padrão de reação. “Agora sabemos que as reações das vítimas não decorrem de deficiências morais nem indicam pouca força de vontade ou má índole. Elas são produto de mudanças reais no cérebro, causadas pelo evento traumático”, afirma o psiquiatra e cientista Bessel Van der Kolk em seu livro “O Corpo Guarda As Marcas”.
“O trauma é talvez a causa mais evitada, ignorada, menosprezada, negada, incompreendida e não tratada do sofrimento humano.
Peter Levine, autor de “Uma Voz Sem Palavras: Como o Corpo Libera o Trauma”
RESSONÂNCIAS E REVIVESCÊNCIAS
Estudos com Imagens por Ressonância Magnética Funcional (fMRI, na sigla em inglês) mostraram que se a interpretação do risco é intensa e se o sistema de filtragem da percepção for insuficiente, você perde o controle, literalmente. Explosões de agressividade, estados de sobressalto prolongados e paralisias/inércias tornam-se inevitáveis. Quando incapaz de distinguir bem as intenções alheias (se amigáveis ou hostis), você começa a evitar (ou minimizar) os relacionamentos e fica suscetível a gatilhos variados. Assusta-se com sons altos, se enfurece com pequenas frustrações, tem arrepios ao menor contato físico e dificuldade extrema de estar presente aqui agora. Em pane, o sistema nervoso entra automaticamente no modo “luta” ou no modo “fuga”. As negações, resistências e vergonhas – conscientes ou inconscientes – são inúteis. Você continua assombrado(a) pelo que te aconteceu.
Alguns fantasmas são mais óbvios que outros. Você até pode ter clareza de como o trauma se enreda em tua mente (isso é mais comum no trauma agudo, que é pontual), mas teu modo de pensar, sentir e agir fica seriamente comprometido. Entretanto, um dos piores efeitos da experiência traumática, não importando o tipo de trauma, é a confusão que cria sobre quem somos. A gente se sente alienado do eu com o qual estamos acostumados a lidar. Os pensamentos negativos geram inseguranças intensas, que realimentam a possibilidade de o episódio traumático ser revivido (mentalmente). Outra consequência complicada de um trauma é a “espiral”: um fato insignificante (às vezes sem relação com a experiência passada) faz os pensamentos girarem sem parar em torno de negativismos como “Está tudo errado”, “nada presta”, “não tenho salvação”.
ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
O comportamento padrão da vítima é fazer o que parece mais fácil e seguro no momento em que o problema vem à tona de novo: empurrar o temor e a vergonha para debaixo do tapete, na esperança de que tudo passe. Esse mecanismo é ainda mais rígido em quem sofreu trauma crônico (o mais difícil de identificar). Os pensamentos e os sentimentos da experiência passada inibem a racionalidade. Inibe a compreensão das causas e efeitos. Uma vez instalado o complexo traumático, as chances de a vítima sofrer de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) aumentam muito. [Atenção: trauma e TEPT não são a mesma coisa. O segundo decorre do primeiro.] As alucinações e os ataques de fúria de ex-combatentes da Guerra do Vietnã são exemplos clássico de TEPT.
As pessoas expostas a um fato horrendo – envolvendo morte ou ameaça de morte, lesão grave ou agressão à integridade física, por exemplo – começam a apresentar medo, impotência e horror em determinadas situações. Passam a ter pesadelos, flashbacks e a sensação de que o evento traumático está ocorrendo de novo aqui agora. Passam a evitar pessoas, lugares, pensamentos e sentimentos associados ao(s) episódio(s) traumático(s). Efeitos colaterais como amnésia e estado de alerta permanente provocam insônia e irritabilidade, por exemplo. “O enredo é claro”, observa Van der Kolk: “O evento traumático passou, mas ele continua a ser reproduzido em lembranças que se renovam incessantemente”.
ISOLAMENTO E DESCONEXÃO
Importante reiterar: trauma não é o que aconteceu com você, mas sim o que acontece dentro de você como resultado do que aconteceu com você. É tão invisível quanto um vírus, e seu modo de funcionar é singular e complexo. É como se um vilão daqueles bem malignos passasse a morar dentro de você para criar conflitos e colocar em dúvida quem você é, a tua verdadeira história, teus reais sentimentos; você se desconecta de si mesmo, evita emoções, não segue as tuas intuições e esquece teus valores, teus sonhos, tuas habilidades, tuas aspirações.
“Outra analogia para o trauma é a chuva – a chuva sem fim”, escreve Paul Conti: “A princípio, parece uma garoa, mas, sem qualquer proteção, acabamos encharcados até os ossos, e a água continua acumulando-se em volta até sermos carregados por um rio de sofrimento. Não podemos transformar um dilúvio de trauma em seca da noite para o dia. Mas, juntos, podemos ajudar uns aos outros e nos manter secos. Unidos, podemos procurar um lugar mais alto para estarmos”.
TOXINAS INTERGERACIONAIS
O documentário “A Sabedoria do Trauma” (2021), centrado nas pesquisas do dr. Gabor Maté, médico canadense de origem húngara autor de vários livros, oferece três pressupostos interessantes: 1º) Maté defende que os traumas são intergeracionais, ou seja, crianças e adolescentes traumatizados de alguma forma tendem a provocar traumas nos próprios filhos e assim por diante. Significativas as cenas do filme em que presidiários formam um círculo no pátio do presídio e relatam histórias de abandono, violência doméstica, torturas, privações, etc. 2º) Várias pessoas dependentes de drogas relatam os dramas que enfrentaram, criando uma conexão direta entre vícios e traumas.
O terceiro aspecto interessante é a ligação do individual com o social – a “cultura tóxica” em que vivemos, segundo Maté: “A gente costuma acreditar que as causas das doenças crônicas – mentais ou físicas – são tão genéticas quanto ambientais, o que é verdade, mas não levamos em conta que o ambiental abrange também os sistemas político e econômico. Pensamos que as doenças são acontecimentos aleatórios, aberrações misteriosas, fatalidades insondáveis. Não são. Vivemos numa cultura tóxica, que dissemina negatividades, desconfianças, hostilidades, inseguranças, polarizações, crenças autodestrutivas, moralismos de superfície e abusos de todo tipo”.
VISLUMBRES E SOLUÇÕES
Com sistemas de diagnósticos cada vez mais sofisticados, os profissionais da área de saúde agora podem criar métodos e fazer experimentos com base na neuroplasticidade natural do cérebro. Bessel Van der Kolk vislumbra três caminhos para o tratamento: 1) Facilitar, por meio de diálogos, a compreensão sobre o que aconteceu para que as vítimas possam processar suas lembranças negativas; 2) Conforme o caso, prescrever medicamentos que interfiram nas reações inapropriadas; 3) Incentivar as vítimas a sentirem mais plenamente o próprio corpo, o que, segundo Van der Kolk, as ajuda a mitigar raivas, desvalias e impotências (sexuais, inclusive).
Não podemos viver em um mundo em que todos sejam vítimas. “Sou assim porque meu pai me fez assim. Eu sou assim porque meu marido me fez assim.” Sim, somos realmente formadas por traumas. Mas então você precisa assumir o comando; você agora é a responsável.
Camille Paglia, acadêmica, autora de “Mulheres Livres, Homens Livres” (Quetzal, Portugal, 2018)
“A maioria dos pacientes com os quais trabalhei se beneficia de uma combinação dessas três estratégias”, escreve Van der Kolk: “A terapia pela palavra, a compreensão e o restabelecimento do contato saudável com outras pessoas abrem perspectivas novas, enquanto os medicamentos auxiliam no desligamento dos sistemas de alarme interno hiperativados. No entanto, as marcas do passado podem ser transformadas mediante experiências físicas que restaurem o autodomínio”. Agora me lembro que, desde criança, absorvi todo o sofrimento emocional – traumas, raivas, rancores, inseguranças – dos meus pais. Não foi nada fácil lidar com isso, mas acho que consegui.