Caso eu tivesse certezas a respeito da vida antes do Big Bang do maldito vírus espocar em um corpo chinês no final de 2019, não mais as teria no início de 2020, of course. Até porque as certezas pesam muito, já notou? E quem nunca as teve nem faz ideia de que nunca ter certeza é também uma certeza. Se tudo é humano, alguém em algum lugar de alguma forma errou. O mundo não será mais o mesmo, repetem. Disseram isso também quando derrubaram as Torres Gêmeas, quando o sistema financeiro quebrou em 2008, quando… Haverá o a.C. (antes do Corona) e o d.C. (depois do). Ao que parece, todas as formas de certeza não científica e não intuitiva contêm o C da cegueira.
Nesse momento em que perdemos a ponta do fio que nos ligava àquela insana mania de querer controlar tudo, eu podia estar em uma casa de montanha nos Apeninos (na região de Modena, por exemplo), escondido na natureza feito um Sapiens, mas o governo italiano proibira também os deslocamentos entre municípios. Não reclamo: estou em casa (em Florença) e aqui posso ficar. Ah, ficar em casa é um privilégio que me concedo desde sempre. Mas o mais importante não é estar/ficar. É sentir-se em casa. Sinta-se em casa, digo a mim mesmo.
Forçado a ser/estar de um certo modo, como agora, em Quarentena, a faculdade mais intrínseca, exclusiva e preciosa a cultivar-se é o acreditar. Exemplo: acreditar que precisa atravessar em boa forma física essa escura etapa de movimentações proibitivas. Um tal de Pascal (risos) escreveu: “A desgraça do homem vem do fato de não ser capaz de estar tranquilo em seu quarto”. Mundanos que não sabem o que é ser mundano (e monásticos que na verdade não o são) rebateriam: tranquilidade é solidão. É?
SOLIDÃO E FANTASMAS
A vida, no fundo, é longa, muito longa, longa demais, até, e os espaços nunca foram recebidos/dados de graça. Soam inteligentes, tais conceitos? Mas são apenas verdades parciais… Como estas: 1) Os mortos por Corona são mais que números; 2) Os caixões comportam mais que centímetros cúbicos; 3) As ciências nunca tiveram fronteiras; 4) Os sinos das dezenas de igrejas de Florença soam mais alto desde o Dia Nove em meio ao silêncio sepulcral; 5) Os chineses (com ajuda dos russos) inventaram tudo isso para derrubar o Ocidente e dominar o mundo; 6) Não sei o que sei mais.
No Centro Histórico novos sintomas de fantasmas (nada a ver com os Medici) surgiram. Os turistas há muito espantaram para longe os moradores do centro (ou “parque temático”, ou “città d’arte”, dá no mesmo). O Covid-19 por sua vez de repente expulsou para longe os turistas. E assim, no Episódio 1 da Temporada 25 de “Black Mirror” traficantes e assediadores respiram a sós. As ruas? Desertos sem máscaras. Amigos e amigas sentem arrepios ao sair com seus cães à noite. Animais percebem as guerras bem antes de nós.
E no dia 24 de março de 2020, primavera (para quem não sabe): nevou. Branqueadas as colinas toscanas. De madrugada o manto se deitou também sobre as baixas altitudes. A autoestrada A1 fechou por volta das 4:00am (para quem?). O frio que não compareceu uniformizado em seus dias e meses resolveu aparecer à paisana precisamente quando até a razão dos ateus estava a um passo de ceder às superstições. Que diabos está acontecendo, pergunta um. Que diabos não está acontecendo, lamenta outro. O fato altamente indiscutível é que assim é/está.
SILÊNCIO E SACRIFÍCIO
Você pensava poder estar aonde quisesse e, no entanto, está onde está, faz o que faz, espera o que espera, e chega o instante em que não resta muito mais que uma vida em silêncio. Não ter o costume de curtir silêncios ou não ter sido educado/a para apreciá-los é um mal. Você certamente nunca parou para ouvir ideias como “nem só de rumores é feita a energia” ou “os silêncios têm a aptidão de falar”, mas você sabe do que se trata, no fundo. O silêncio ao nosso redor, tanto quanto aquele que permanece dentro, pode conter densos significados. Mas quem, além de um alguém, se interessaria por um idioma desconhecido?
Tenta, tenta reter na memória que “estar bem implica ser capaz de sacrificar alguma coisa”, mas essas óbvias noções acabam quase sempre assim: no ar. A persistência, porém, garante encontros com gente hábil em juntar de novo todos os vapores, organizando mesmo molécula por molécula, até restabelecer a liquidez do “estar bem implica ser capaz de sacrificar alguma coisa”. E muitos vão ficar se debatendo com a questão da questão da questão do que se deve sacrificar, afinal. Please, operator! Cai a ligação.
TEMPO E PRESENÇA
O ponto chave não é a chave, mas o ponto. Pense bem. Se o ponto cabe nas frases, nos relacionamentos, nas carreiras, nas alegrias, nas tristezas, enfim, por que a gente não teria o direito de querer saber quando e onde colocar o último ponto em dado ponto? A essa ação de terminar muitos dão o nome de ponto final. O ponto varia com o tempo, que passa a ter vida própria e por isso não passa. Digamos então que sim, que agora está em nossas mãos a oportunidade de colocar pontos finais onde bem entendermos.
Se por acaso acha que o presente – a única entidade com a qual podemos contar de fato – faz sofrer, então, só há um jeito. Não ter sempre a mesma reação, aquela de ficar tentando encontrar uma novidade mais e mais e mais nova que projete a sua atenção para longe do agora. Dizem os calculistas que paramos de nos concentrar após oito segundos. No ano 2000 eram doze. A média dos peixes vermelhos é nove. Olha, não vim ao mundo para dizer o que (não) deve ser feito, então anota aí: mesmo em quarentena, uma vida inaborrecível é impossível.
NASCER DE NOVO
Teria aí uma complicação para me emprestar? Desde que me guardei em casa desaprendi um bocado a arte de complicar. Talvez esse esquecimento – ou involução, quem sabe – tenha vindo à tona hoje porque ultimamente só o que tenho feito é comer, beber, dormir, ouvir Miles e ler Leminski. Ah, quanta atividade não obrigatória eu já poderia estar fazendo há séculos! Você, que pensava que um camundongo jamais poderia devorar um elefante, comece a considerar que, se dividido em milhões de pedacinhos, o camundongo pode… Yes, we can!
Apenas te peço que não traga para casa o medo de perder. Se o coração pulsante da sua vida é o Instagram, façamos um rápido chat. Olha, eu não assino embaixo da ideia de que estamos sempre ultrapassados. Sou velho, mas não dependo de alguém ver o que faço para poder me achar. Tenho dependências muito próprias. Dependo da vitamina que vem do Sol, por exemplo, mas também dos tons calmantes das neblinas. O único medo que agora não tenho é o de nascer de novo.
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