Decidi refletir sobre pertencimento, tendo em mente que: 1) minhas configurações psíquicas vão comigo aonde eu for; 2) decidir pertencer é uma opção com prós e contras; 3) preferir não pertencer é também legítimo; 4) ter sido um outsider quase toda a minha vida impulsionou meu autoconhecimento; 5) quanto mais me entendo, mais me aceito – condição decisiva para o verdadeiro pertencimento, que depende de você ser quem realmente é.

FAMÍLIA E ORFANDADE
A primeira experiência de pertencimento ocorre na infância. No entanto, milhões de crianças com pais presentes são negligenciadas, reprimidas e rejeitadas em suas singularidades. Sob vários aspectos, são órfãs. Há os adultos órfãos excluídos do sistema econômico ao qual serviram; e os adultos órfãos refugiados de regimes intolerantes e guerras; e os órfãos culturais, pessoas forçadas a ocultar características de suas personalidades vistas como “erradas” por sociedades opressivas.
Essas e outras formas de orfandade impactam negativamente nossas buscas por pertencimentos fora da família e o significado futuro que damos ao pertencer. Com o tempo, deixamos o âmbito familiar para buscar vínculos em relacionamentos profissionais, amorosos, de amizade, etc. O sentimento de pertencer (a um lugar, a um grupo ou a alguém) valida e estende nossa existência. Esperamos que nos digam: “Te enxergamos e te entendemos. Seja bem-vindo”. Pertencer é relacionar-se, portanto.
OUTSIDERS E EXCLUÍDOS
Um dos assuntos mais frequentes em minhas psicoterapias foi a sensação de ser um estranho e aquela maldita voz interior me repetindo “você é esquisito”. Esses monólogos interiores autodestrutivos nascem de alguma relação tóxica com o mundo (principalmente com familiares e cuidadores). Por décadas, fui uma peça redonda dentro de um tubo quadrado. “O verdadeiro pertencimento não requer que você mude; requer que você seja quem é”, escreveu Brené Brown em “A Coragem de Ser Você Mesmo” (2021)
Mesmo num contexto de sofrimento (por exemplo: pobreza, violência, violação de direitos humanos, etc.), o sentimento de não pertencer à própria família está entre as dificuldades mais difíceis de superar, porque destrói a tua noção de amor-próprio. Você nega a tua dor e, mergulhado em teus silêncios, cria histórias que geralmente te retratam como uma pessoa solitária e indigna de amor. O que acontece depois? Você se torna mestre em tentar se encaixar. Faz de tudo para ser aceito e ver-se inserido.
ESPAÇOS E EMPATIAS
Pode-se experimentar o pertencimento numa comunidade, numa área geográfica, numa carreira ou na experiência como habitante de um planeta ameaçado. Minha vocação para a escrita e meu saudável relacionamento com a Patrícia me mantiveram pertencido nos últimos trinta anos. Embora o pertencer tenha caráter identitário (refere-se a quem somos e como somos vistos), tento não me prender a convenções socioculturais, dentro do possível.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Clarice Lispector, “Pertencer” (crônica, 1968)

Na cultura hiper tecnológica, as pessoas se escondem atrás de suas telas (seus bunkers ideológicos) à cata de confirmações para suas crenças e opiniões. Você é categorizado como sendo isto ou aquilo sem que teu categorizador tenha sequer uma noção de quem você é. Esses bunkers imunizam as pessoas de seus medos, mas não do problema de fundo: ausência de empatia e compaixão. As redes sociais, embora facilitem ações politico-comunitárias, continuam turbinadas por dor, ódio e preconceito.
VISLUMBRES E PAZ
Pertencer a Nova York, São Paulo e Florença me trouxera benefícios: oportunidades de trabalho, multiculturalismo, acesso fácil a serviços essenciais e contato permanente com todas as formas de arte. Por outro lado, minimizei ou ignorei meu papel em cada um desses pertencimentos. Para me encaixar em lugares tão desejáveis (do ponto de vista material) como aqueles, arquei com altos custos monetários e psicológicos.
Em 2021, quando decidi me mudar de Florença para uma zona rural de montanha, eu não tinha nenhuma experiência de morar no interior. Frassinoro, município onde morei, tem uns 2.000 habitantes no total, espalhados por um território vasto de 95 km2. O que me atraiu para Frassinoro, além do desejo de uma experiência junto à natureza pela primeira vez na vida, foi o senso de comunidade dos meus vizinhos e a paz local, com sua beleza imersa em silêncios.
NECESSIDADE E ESCOLHA
Como um estrangeiro cosmopolita orgulhoso de seu cosmopolitismo foi parar em Frassinoro? Antes mesmo de vir para a Itália eu vinha sondando estilos de vida diferentes. Minha grande capacidade de adaptação e o autoconhecimento elevado que construí me ajudaram a enfrentar a transição. Não sou alérgico a mudanças (pelo contrário) e não acredito em soluções idílicas. E nunca trabalho com a ideia de “definitivo”. Estou aqui hoje, amanhã posso não estar. A liberdade está em poder experimentar.
O pensamento convencional acredita que o pertencimento está ligado a um “lugar mítico”. Mas… E se pertencer não tiver nada a ver com esse tal “lugar mítico”? Uma coisa é certa: autoconhecimento é fundamental. Quanto mais me conheço, mais me aceito. Quanto mais me aceito, mais me pertenço, e mais me sinto capaz de escolher o “meu lugar” e me adaptar a ele, voluntariamente. Pertencer é tanto uma necessidade quanto uma escolha.
A alienação, a sombra escura do pertencimento, é tão onipresente que podemos chamá-la de epidemia.
Toko-pa Turner, autora de “Belonging: Remembering Ourselves Home” (Her Own Room Press, 2017)

MUTANTE E FLEXÍVEL
Passei a maior parte da vida tentando agradar e me adequar para ser aceito/reconhecido, muitas vezes passando por cima de meus projetos e valores. Descobrir (na pele) que o pertencimento não é nem fixo nem imutável facilitou minha compreensão. Por exemplo, não precisei me transformar em um agricultor ou produtor de leite para provar que estava realmente dentro de onde estava. Na minha visão, somos livres quando entendemos que:
1) podemos pertencer e ao mesmo tempo não pertencer;
2) a decisão de pertencer vem de dentro para fora, não de fora para dentro;
3) ninguém pode roubar de você o teu senso de pertencimento;
4) dizer que pertenço a mim mesmo significa que vim de onde vim, que foi como foi e que esse caos que você está vendo… sim, sou eu.
Cada vez gosto mais dos seus textos.
Obrigado, Alex ! Você é um educador valioso ! Abço
Oi Sérgio ! que bom que você voltou a publicar seus textos !!!!1
Oi Paula !! De vez em quando paro de escrever com as mãos, mas continuo escrevendo mentalmente… rs… Bjo
Belíssimo texto, Sergio. Você escreve com leveza, sem pretensões de ensinar, mas ensinando, pois bem claras são suas argumentações. Muito bom poder sentir um pouco como você está, por aí, em meio a uma paisagem rural e rústica, mas conectado com o mundo. Avante com alegria e paz!
Obrigado pela mensagem generosa, Abel Sidney. Sim, sigo conectado com o mundo, sempre. Abraço!
Ei Sérgio estava sentindo falta. Gosto de ler o que você escreve, sempre me traz muita coisa pra pensar.
Palma! Que bom receber mensagem sua. E saber que meu textos te tocam de alguma forma é um grande incentivo. Beijo, Sergio