Nesta etapa da civilização em que discursos de ódio e catástrofes ambientais nos ameaçam continuamente, sempre que você se interrogar sobre os destinos da humanidade, lembre-se de mim: também eu às vezes me sinto personagem de um distópico filme intitulado “Mundo em Chamas”. A propósito, você viu “O Dilema das Redes” (Netflix)? Esse documentário sugere que na verdade o título do filme distópico que descreve a nossa condição atual deveria ser outro: “Os Prisioneiros” (risos). Por quê? Porque redes sociais aprisionam. Essa conclusão não é novidade para ninguém. Exatamente por isso precisamos falar a respeito desse tema.
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DOCUMENTÁRIO
Para você que, como eu, soltou-se do próprio umbigo já há algum tempo, “O Dilema das Redes” não traz nenhuma novidade. É até repetitivo, chato e ingênuo o modo como constroem e dramatizam a narrativa. E mesmo que trouxesse uma grande novidade e ela fosse chocante, não seria nem mais nem menos chocante do que os conteúdos chocantes que acompanhamos pelas mídias que se autodenominam jornalísticas. O fato é que não podemos ficar presos à estética ruim do filme para desqualificá-lo. Há pelo menos dois pontos nele que não posso deixar de mencionar para você, que me segue: 1) o impacto das redes sociais na saúde e na autoestima; 2) e a maneira como essas redes vêm enfraquecendo a nossa capacidade de viver em uma democracia.
Estamos metidos em uma encrenca de verdade. Os sistemas de informação, tão imprescindíveis às deliberações de um sistema democrático de governo, vêm sendo manipulados pelas empresas de internet para impedir nossa capacidade de raciocínio e ação. E governantes malévolos e cínicos (Trump, Johnson, Putin, Bolsonaro, entre outros) não hesitam em usar as redes sociais para difundir ideias estapafúrdias, mentiras e desavenças, tendo as empresas de mídia social como suas cúmplices. (Parêntese: governos de todas as tendências ideológicas têm feito mau uso das redes sociais, mas os populistas de extrema direita mundo afora têm conseguido instrumentalizá-las efetivamente. Fecho o parêntese.)
MANIPULAÇÃO DA PSIQUE
A manipulação da nossa psique se dá pela Inteligência Artificial, que, obviamente, é criada/gerida por pessoas de carne e osso, e ganhar dinheiro é a única coisa que lhes interessa. Daí que precisamos dar mais atenção ao fato de que o objetivo de empresas como Google, Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter e outras é monetizar a nossa atenção. Como? Com viciantes (e bem calculadas) injeções de dopamina. Isso tem impacto em nossa saúde (há muita gente vulnerável e com a autoestima baixa por aí), claro, mas atinge também o funcionamento dos regimes democráticos.
Nossa atenção é um ativo valioso há muito tempo. A diferença é que os gigantes do setor agora querem capturar nossa atenção apelando para nossas emoções e indignações e oferecendo altas doses de provocação e informações desconcertantes. O que ingenuamente acreditamos ser “a realidade” pode não passar de invenção deliberadamente focada em nossas vulnerabilidades. E é fácil fazer. Alimenta-se a IA com dados comportamentais nossos e os algoritmos cuidam do resto.
SENTIMENTO TRIBAL
Quem não experimentou nas redes sociais algum sentimento de revolta tão imponderado quanto tribal? Seguindo a timeline, encontramos vídeos aterrorizantes, discursos ultrajantes, fake news, etc. Até a nossa suposta rebeldia íntima tem sido monetizada. Em “O Dilema das Redes”, Tristan Harris, ex-designer do Google, cita uma máxima das empresas high-tech: “Se você não está pagando pelo produto, você é o produto”. Sim, você já sabia disso. E eu também. So what? Calma.
As plataformas de mídia social monitoram quase todas as nossas atividades online, a ponto de poderem prever nossas atitudes e sentimentos; e aproveitam os dados coletados para nos leiloar ao publicitário mais esperto e ao anunciante mais endinheirado. Não por acaso, algumas das principais empresas de internet estão entre as mais ricas da história do mundo. Mas não se trata apenas de vender coisas. Essas empresas perceberam que desinformação também vende. E muito.
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AS CONSEQUÊNCIAS
Nossos cérebros são condicionados a receber (e desejar) sempre mais do mesmo. Versões alternativas, fatos contrários às nossas crenças, argumentos incômodos e estatísticas sólidas são removidos da timeline. Cansei de ver posts com instruções sobre como obter maior diversidade de posts no Facebook, por exemplo. Você tenta daqui, puxa dali, mas, na verdade, é Zuckerberg quem está no controle da coisa. Pluralidade de perspectivas em redes sociais, não há. E quando há alguma, mínima que seja, a gente não hesita em bloqueá-la ou cancelá-la (cancelar é o verbo do momento).
Chama à atenção o fato de vivermos isolados em tribos polarizadas em seus afetos insanos. Tribos que tentam desumanizar umas às outras, gerando ciclos de ataques que só produzem mais e mais desinformação. E o que acontece quando até a desumanização é monetizada? Pense na popularidade da absurda teoria conspiratória QAnon. Pense na quantidade de gente que ainda insiste em acreditar que a pandemia é uma farsa. Pense na maluquice do terraplanismo.
OS ALGORITMOS
Quanta gente rica, liberal e branca mudou sua visão de mundo drasticamente, quase que da noite para o dia. Substituiu o ideal de democracia multirracial e cosmopolita – sistema cheio de problemas, claro, mas vibrante – por versões toscas de sociedades patriarcais autoritárias. Muitas pessoas que hoje se dizem ativistas (de todas as tendências possíveis) perderam a cabeça talvez por terem ficado tempo demais online. E o pior: consideram-se heróis.
Os algoritmos funcionam dia e noite, ininterruptamente, mas não sabem (ainda) o que é caráter, lealdade e ética. Captam nossas fragilidades e as universalizam. No entanto, o pior efeito, na minha visão, é o impacto que tudo isso tem na política. Esses robôs acabam desligando as capacidades cognitivas de que tanto precisamos para fazer funcionar uma democracia – o diálogo e a pactuação –, e este é um ponto importante do documentário dirigido Jeff Orlowski.
BARGANHA DIABÓLICA
“Ontem mesmo”, quando eu queria conhecer contextos e interpretações mais refinadas, consultava mídias cujo viés político, embora contrário ao meu, era estável e confiável. Hoje jornalistas, repórteres e editores estão presos na mesma gaiola de confusão que nós (eu e você), e talvez por isso passem tanto tempo desmentindo boatos e loucuras criadas por governantes irresponsáveis e investem tão pouco tempo investigando os três poderes. Os geradores de desinformação, aliás, gente maligna, estão sempre vários passos à frente de quem produz informação veraz e exata, percebeu?
A pandemia só fez piorar esse cenário caótico. O isolamento físico aumentou o medo, a ociosidade e a procrastinação, matérias primas imprescindíveis para as mídias sociais, cuja fantasia parece mais formidável (no mau sentido) do que a imaginação de George Orwell. No fim das contas, somos obrigados a nos submeter a uma barganha diabólica: trocar nossas preferências íntimas por memes, nossa coesão social por instigações tribais e a verdade por aquilo que gostaríamos de ouvir.
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QUEM ACREDITA?
Está chegando o dia em que ninguém acreditará mais em ninguém? É uma das perguntas inquietantes que “O Dilema das Redes” levanta. Ao que parece, já está acontecendo. Frequentemente ficamos em dúvida sobre o que é fato comprovável e o que é invenção. E esse problema (super sério) não será resolvido no curto prazo, lamento te dizer. O que fazer, então? A primeira medida é apoiar propostas de leis que dificultem a vida desses gigantes high-tech (que pelo menos paguem impostos!).
A segunda medida é vigiar os governos democraticamente eleitos (municipais, estaduais e federais), que deveriam usar as mídias sociais para garantir a transparência e a exatidão de suas públicas atividades, em vez de usá-las para infantilizar, confundir e polarizar. No entanto, as medidas mais urgentes têm a ver com o modo como nos comportamos.
O QUE FAÇO
Como a saúde é a primeira que sofre as consequências do excesso de atividade online, tenho procurado agir assim:
- Nunca me esqueço que o modelo de negócios dessas plataformas sociais…: 1) não foi construído para me servir, mas sim para me explorar; 2) essas empresas hoje obtém lucro semeando a discórdia;
- Não permito que celulares entrem em espaços íntimos meus (banheiro, quarto de dormir, mesa onde faço minhas refeições, etc.);
- Reservo tempo para atividades que me fazem bem e não exigem telecomunicações, como andar de bicicleta, caminhar no parque e tocar violão – com todos os aparelhos silenciados, claro.
- Quando tenho que me concentrar em tarefas importantes, desligo todos os aparelhos que possam me perturbar;
- Fico atento ao que sinto no pouco tempo que passo nessas redes. Posts que suscitam medo, inveja, ciúme e raiva são sinal de que devo cair fora.
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Sergio, esse seu artigo é excelente, diria até mesmo “necessário”. Vivemos uma situação crítica realmente, e temo de verdade pelo futuro. Somos manipulados, controlados, vigiados, violentados em ambientes digitais. A humanidade precisa reagir. Obrigado por abordar temas tão importantes.
Paulo, querido, estamos no limiar de um “turning point”. Depois do que ocorreu esta semana nos EUA, ficou claro para mim que há duas coisas muito perniciosas ocorrendo no mundo: 1) Ricos ficando acintosamente mais e mais ricos. 2) Pessoas não ricas perdendo completamente o senso de coletividade. Isso não pode continuar. Abração