Resolvi encerrar este complicadíssimo 2020 falando sobre o fator QB (Quanto Basta). Quanto te basta de trabalho, sucessos, fracassos, alegrias, ansiedades, relacionamentos, mentiras, amores, atividade física, redes sociais, conflitos, perdas, notícias, medos, fobias, hobbies… Quanto te basta de roupas, sapatos, carros, viagens, comidas, bebidas, tecnologias, drogas, garrafas plásticas, likes, seriados, dinheiro?
Já que tudo nesta vida pressupõe dosagens, sugiro aceitarmos que: 1) Precisamos encontrar uma medida para cada objeto e para cada emoção importantes; 2) O processo de encontrar as “medidas ideais” é particular; 3) No plano emocional, não existem medidas que sirvam para todos; 4) Os “cálculos” têm de levar em conta que o Planeta é tão finito quanto nós.
“CANIVETE SUÍÇO“
A ideia de escrever sobre o fator QB não me ocorreu por acaso. Há algum tempo eu vinha pensando sobre qual é a missão do “Rep Ats”. Lendo e relendo textos diversos, ficou claro: o “Rep Ats” existe para nos ajudar a refletir sobre qual seria a tua, a minha, a nossa medida ideal. Aprimorar nosso senso de proporção ajuda a organizar coisas e emoções.
Na mesma semana em que postei a tal foto, a Annamaria Testa, colaboradora do “Rep Ats”, me enviou seu novo livro, cujo título em português seria “Canivete Suíço: Compreender, Imaginar, Decidir e Comunicar-se Melhor em Um Mundo Mutante”, coletânea de artigos que ela publicou na revista “Internazionale”. O livro contém muitas pérolas. Uma delas é exatamente sobre resgatar o sentido do QB (Quanto Basta). Bingo! [C. G. Jung chamava isso de sincronicidade.]
SENSO DE PROPORÇÃO
Annamaria cita um trecho do livro do antropólogo Gregory Bateson, “Mente e Natureza”, que lhe vem à mente com frequência, e que ela gostaria que ficasse gravado também na mente de todos nós – como ficou na minha, sem dúvida. Resumo aqui o trecho do livro (tradução livre):
…para todos os objetos e experiências, há sempre uma quantidade ideal; acima dessa quantidade as variáveis se tornam tóxicas; descer muito abaixo do ideal, por outro lado, significa sofrer uma privação. Essa característica dos valores biológicos não pode ser encontrada no dinheiro. O dinheiro sempre tem um valor transitivo: mais dinheiro é presumivelmente melhor que menos dinheiro; por exemplo, 1001 dólares é preferível a 1000 dólares. (…) Os valores biológicos não funcionam assim: mais cálcio não é sempre melhor que menos cálcio. Há uma quantidade ideal de cálcio necessário na dieta de um dado organismo: acima dessa medida ideal o cálcio se torna tóxico. Por analogia, então: para o oxigênio que respiramos, para as comidas e provavelmente para todos os elementos presentes em nossos relacionamentos, o “demais” é inimigo do bom. Nesse sentido, pode-se sofrer até por fazer psicoterapia “demais”. (…) Um relacionamento sem conflitos é chato, mas um relacionamento com conflitos demais é tóxico; o desejável seria um relacionamento com uma quantidade ideal de conflitos. Até o dinheiro, considerado não em si mesmo, mas em função dos efeitos que pode ter em quem o possui, pode, talvez, além de um certo limite, se tornar tóxico…
Gregory Bateson
PESOS E MEDIDAS
A ideia de fundo que Annamaria Testa quer realçar através das palavras de Bateson é tão simples quanto definitiva: há uma quantidade ou medida ideal para tudo de que precisamos para viver, e para tudo o que desejamos e para tudo o que gostaríamos de aprender e/ou comprar. Lembra aquele ditado popular (e excessivamente genérico) que diz “um é pouco, dois é bom, três é demais”? Pois é. É o ditado mais impreciso que conheço, mas é disso que estamos falando: de pesos e contrapesos.
Imagine uma torta de chocolate: na primeira garfada, percebemos que está deliciosa. Na segunda, melhor ainda. Quando mais a comemos, mais a apreciamos. Mas depois de comer torta demais chegamos ao ponto em que a próxima garfada já não será percebida com o mesmo prazer; e se continuarmos a comê-la vorazmente mesmo assim, ela ficará enjoativa e poderá causar indigestão. Nosso limite – o nosso QB – está naquele ponto em que apreciamos a torta ao máximo.
ENTRE O “DEMAIS” E O TÓXICO
O “muito pouco”, que se opõe ao “demais”, é bem fácil de identificar e processar. O “muito pouco” é a medida que descreve aquilo que você acredita que te falte, e que, muito provavelmente, te falta mesmo, não importando se se trata de dinheiro ou de amor. O momento então é de darmos mais atenção ao excesso, ao limite, ao “demais”.
A linha que separa o “demais” do ideal, do suportável, do viável, do realístico, do conforto não comodista, do saudável, etc. é quase invisível. No entanto, quando entramos na zona do “demais”, o próximo nível é o “tóxico” (de que fala Bateson). Você sabe, em um mundo moldado pela publicidade e pelo consumismo, somos constantemente convidados a errar a mão.
Mas quando ultrapassamos a linha do “demais”, somos avisados. Preste atenção, por exemplo: 1) No teu corpo: ele expressa com clareza as consequências de teus excessos; 2) Na tua mente: ela te envia sinais sobre as tuas confusões emocionais; 3) Em teu parentes, amigos e colegas que realmente te querem bem: eles/elas percebem (e apontam) a insensatez de teus atos; 4) Na tua incapacidade de colocar em prática um “Não!” ou um “Chega!”: isso agravará os “sintomas” expressos nos itens anteriores.
PERDEMOS O QB?
“Tenho a sensação de que perdemos pelo caminho o senso propriamente dito do QB”, escreve Annamaria Testa. Concordo com ela. Estamos muito (demasiadamente) imersos em um sistema tão veloz quanto desnorteante de excitações e vantagens rápidas, que dificultam: 1) a conscientização dos nossos excessos; 2) e a compreensão das consequências que os nossos excessos têm na nossa saúde e na saúde do planeta.
O fato é que existe um limite não apenas filosófico e existencial, mas também (e sobretudo) um limite fisiológico, imposto pelo nosso corpo, nosso cérebro e nossa mente. Isso vale para a quantidade de felicidade que somos capazes de experimentar, e para a quantidade de atenção que somos capazes de dar aos assuntos que nos dizem respeito, e para a quantidade de vitórias que somos capazes de conquistar sem sermos atropelados por algum sucesso instantâneo que poderá nos transformar em abóboras à meia-noite.
Precisamos entender que… o “demais” transforma todas as coisas em coisas outras. Interrompe o prazer. Destrói os limites. Arrasa o discernimento. Rompe com o sentido. Agora que estamos finalmente nos familiarizando com o conceito de sustentabilidade ambiental, que tal pensarmos também na ideia de sustentabilidade pessoal? Porque o “eu” (o self) não pode mais estar dissociado do “nós” (como espécie), concorda?
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