A música desperta o coração e a mente. A musicoterapia tem ajudado crianças com autismo, e portadores de Parkinson, Alzheimer e outros tipos de “demência”, mas também adultos estressados, ansiosos, deprimidos. Claro que, se pensarmos friamente, as notas e os tons musicais não passam de fenômenos sonoros (fenômenos físicos, sim). O modo como reagimos às suas múltiplas combinações e vibrações, porém, é tão emocional quanto fascinante e complexo.
Conheci um projeto incrível: Music & Memory. Extraordinárias as pesquisas sobre como os músicos e os não musicos têm estruturas cerebrais diferentes e como a música pode (re)ativar a mente. Os protagonistas do Music & Memory produziram também um documentário: “Alive Inside”, disponível no Youtube.
Num dado momento do filme Oliver Sacks (1933-2015), já no fim de sua brilhante trajetória como neurologista e escritor, diz: “As partes do cérebro envolvidas em interagir com músicas não são muito afetadas pelo Mal de Alzheimer ou por outras formas de demência. Mais do que qualquer outro estímulo externo, a música desperta o coração e a mente de uma maneira realmente impressionante”.
REVIVER
“Alive Inside”, como a “Partita nº 1 em si maior” de Bach, é tocante. O modo como a música circula pelos circuitos neuronais de pessoas desmemoriadas e as faz recuperar vivências que pareciam perdidas para sempre é nada menos que encantador de se ver. Esse é o poder da música, aliás: nos despertar para o que somos, para o que poderíamos ser e para aquela força estranha, profunda e insondável que nos torna humanos. A música nos conecta com nosso interior, e nenhum comprimido pode fazer isso.
Ela talvez seja o único estímulo externo que não exige nem diploma, nem receita médica, nem bula, nem ser poliglota para poder atingir em cheio os nossos sentimentos. Por falar nisso, um estudo da Universidade da Califórnia em Davis descobriu que uma parte do cérebro é responsável por estabelecer a ligação entre memórias episódicas e melodias específicas. Ou seja, o que eu sabia e sentia por experiência própria ficou comprovado cientificamente. Reinjetar na mente canções que capturaram nossas emoções em outras épocas faz com que aqueles velhos tempos possam ser revividos de alguma forma.
TESTEMUNHOS
A beleza de “Alive Inside” reside exatamente em testemunharmos diante das câmeras o renascer das memórias de pacientes que sequer lembravam seus próprios nomes. “Assim como a medicina serve para prevenir e curar, a música transcende a beleza estética em si. A sincronia das emoções que sentimos quando ouvimos Mozart, Beethoven e Brahms, por exemplo, nos lembra que é possível compartilharmos um ideal universal de humanidade”, afirma o neurobiólogo e músico Robert Gupta.
Não importa se é clássico, jazz, rock, MPB, samba, country, rap… “Ouvir música cria picos de emoções que aumentam a quantidade de dopamina, um neurotransmissor produzido no cérebro. A dopamina ajuda a controlar os núcleos cerebrais relacionados à recompensa e ao prazer”, sublinha Gupta. Os novos conhecimentos sobre como a música afeta o cérebro e o coração (literalmente) estão criando formas inovadoras de utilização da musicoterapia e restabelecendo ligações entre pessoas. Como terapia, a música tem sido bem sucedida até mesmo quando a linguagem verbal inexiste ou fracassa.
MEDOS E RESSENTIMENTOS
“A música evoca e envolve nossas emoções em estágios diversos de nossas vidas, tanto individualmente quanto em grupos. Pode evocar as emoções mais íntimas e nos ajudar a processar melhor o medo, a tristeza e o ressentimento”, escreveu o compositor e pesquisador Barry Goldstein no ensaio “Music and the brain”. Já percebeu como certas canções dominam a nossa atenção a ponto de esquecermos o tempo presente?
Usando imagens cerebrais de pessoas ouvindo pequenas sinfonias de um compositor obscuro do século XVIII uma equipe de pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Stanford investigou a relação música-mente no que se refere a prender nossa atenção. A pesquisa indicou que a atividade cerebral ocorreu durante um curto período de silêncio entre movimentos musicais – quando, aparentemente, “nada” estava acontecendo. Isso levou os pesquisadores a teorizar que ouvir música poderia nos ajudar a ser mais atentos e concentrados também.
CONCERTOS DIÁRIOS
“Minha hipótese é que esses silêncios são parte da intenção de cada compositor no sentido de guiar o ouvinte e integrar a música em seu cérebro. É o espaço entre as notas que cativa toda a nossa atenção e permite que a mente ocupada se comunique com o coração. Nesses silêncios às vezes super rápidos nosso foco é total e completo”, observa Goldstein: “Por outro lado, todos nós já experimentamos certos tipos de música que não só afetam o nosso humor negativamente como nos tira a concentração, no mau sentido”.
Na África ou na Oceania. Na Bavaria ou nos Andes. Em Istambul ou em Sidney. Não importa onde. Rituais e crenças associados a musicas e ritmos estarão presentes, sempre. Sabe-se que a memória compõe-se de fatos, fantasias, experiências e arquétipos. A música nos desperta para a segurança de fazermos parte de um concerto filarmônico fraterno e permanente. Por acaso estou ouvindo um mix de Marvin Gaye, Zakir Hussain e Marcela Mangabeira, e essa harmonia talvez caótica de estilos está me ajudando a tocar o instrumento chamado vida, hoje, agora.
SAÚDE MENTAL
Música para mim é saúde mental. Quarenta anos atrás, era um pouco diferente. Adolescente, comecei a aprender violão acústico como autodidata. Aos vinte anos, sabia tocar (e cantava) várias dezenas de canções de mestres da MPB: Caetano, Gil, Milton, Chico, Djavan, João Bosco, etc. Até considerei ser músico profissional, mas a febre logo baixou. Na época, a ideia de carreira única, linear e eterna ainda estava arraigada em mim.
Em função de querer ter um trabalho especializado e “financeiramente promissor” (desculpem a ingenuidade), acabei abandonando a música como músico. Como ouvinte, porém, nunca a deixei. E nem ela a mim. Por sermos fiéis um ao outro, construímos um relacionamento duradouro e sólido. Lembro que, nos anos 1980, depois de muita MPB e soul, descobri o jazz. O processo de construção da minha personalidade ganhou um impulso notável e uma guinada nova. Até hoje a música é meu porto seguro. Em 2020, já na era pós-Corona, decidi retomar o prazer de tocar violão acústico (havia trinta anos que não tocava), por hobby.
E você? Mesmo sem possuir um instrumento ou sem saber teoria musical você de vez em quando toca, canta, encanta, interpreta a sua vida?
+ INFO
- Importante lembrar que graças à persistência de pessoas singulares inúmeros projetos têm levado a música a lugares facilmente esquecíveis por políticos e pela mídia convencional, como bairros degradados, presídios, orfanatos, hospitais, abrigos, clínicas para dependentes químicos, etc;
- Eu costumava usar em sala de aula o filme “A Música Nunca Parou” (2014), baseado no ensaio “O último hippie”, de Oliver Sacks, incluído no livro “Um Antropólogo em Marte”. O ensaio descreve o caso de um jovem que abandonara a casa dos pais para ir viver com seus amigos hippies. Um tumor cerebral, porém, o derruba. Encontrado perdido na rua, é levado para uma clínica de reabilitação neurológica. Cerca de vinte anos depois, seus pais o localizam. O problema é que o filho simplesmente não se lembra de nada. O que fazer? O pai é um homem austero e conservador, apaixonado por música, decide contratar uma musicoterapeuta, carreira vista com indiferença, na época. A audição de ídolos dos anos 1960 reaviva na mente do rapaz lembranças importantes e ajuda a minimizar os seus conflitos com o pai. (14/04/2019)