Nossa cultura vê a criança como um copo vazio a ser preenchido com palavras, conceitos, experiências e ideias de adultos. No século 20, meninos e meninas conquistaram direitos e proteções, o que é ótimo, mas a natureza singular dessa fase ainda está longe de ser devidamente valorizada. A infância é um período intenso no qual se manifestam importantes habilidades de interpretação e interação. Porém, à medida que o corpo cresce e a mente se acomoda ao convívio social, a gente passa a ter dificuldade em localizar na memória atividades que praticávamos despretensiosamente quando crianças. Resgatar as capacidades infantis extraordinárias é fundamental, afirmam educadores, e isso pode ser feito em qualquer época da vida.
SETE CAPACIDADES
Segundo a pedagoga italiana Anna Granata, quando nos tornamos adultos, perdemos sete “capacidades extraordinárias” exercidas amplamente na infância (até os 12 anos de idade): 1) imaginação; 2) autonomia; 3) desejo; 4) expressividade; 5) intuição; 6) curiosidade; e 7) participação. Antes de iluminar algumas delas, importante sublinhar que o mundo adulto, por meio de suas instituições, vai pouco a pouco negligenciando e ignorando (ou mesmo desvalorizando) essas capacidades até exauri-las quase completamente.
A filósofa americana Marta Nussbaum, em seu livro “Creating Capabilities: The Human Development Approach” (2013), elaborou um elenco detalhado das capacidades humanas, trabalho que envolveu equipes multidisciplinares. Não (me) surpreende que estejam na lista dela habilidades como saber rir, saber brincar, saber cuidar de animais e plantas e saber usar todos os sentidos para ativar a imaginação. Essas competências deveriam estar vivas em qualquer pessoa em idade adulta, segundo Marta e sua equipe, mas não é o que acontece.
POR QUE NÃO?
Filtros potentes e seletivos entram em jogo muito cedo, com as primeiras experiências em família e na escola. Em família, as expectativas em relação ao futuro da criança ganham status de prioridade antes mesmo da fala; e no ensino oficial as hierarquias de saberes começam a ocupar grandes espaços. Há os conhecimentos considerados úteis, como o português e a matemática, e aqueles vistos como acessórios, como a história da arte e a educação física. Família e sociedade passam a nos transmitir uma ideia de adulto baseada em gênero, pertencimento, profissão e status.
Expressões da inteligência como imaginação, curiosidade e intuição, por exemplo, acabam sendo sacrificadas supostamente por não serem úteis para engenheiros, médicos e advogados. Na melhor das hipóteses, essas expressões são “positivas” para quem desenvolve trabalhos criativos ou recreativos, e olhe lá. A boa notícia é que em qualquer momento da vida podemos redescobrir o “espírito da infância” (no dizer do filósofo Roger-Pol Droit), aquele entusiasmo de tentar pela primeira vez. A boa notícia é que, embora minimizado, esse “espírito” mora em nós para sempre.
UM APARTE
Eu e minha esposa nunca tivemos problemas orgânicos ou psíquicos que nos impedissem de gerar bebês. A gente simplesmente não quis tê-los e ponto. Não possuo nenhuma experiência com educação de crianças, mas tive infância. Ou melhor, não a tive, acho. Arrá! Eis a razão de esse assunto ter me interessado tanto: meus primeiros seis anos de vida, passei-os trancado em casa a maior parte do tempo. Ordens do meu autoritário e agressivo pai, às quais minha mãe possessiva e submissa acatava. Morávamos em um apartamento pequeno na periferia de Belo Horizonte.
Quando ingressei no pré-primário, tinha pouquíssima experiência de sociabilização com crianças da minha idade. Proibido de me mover fora de casa para brincar, meu caráter introvertido foi então potencializado (fui filho único até os sete anos). Já adulto, entendi que aquele regime prisional limitou muito minha capacidade de imaginação, mas não completamente. Compensei esse “déficit” inventando brinquedos com os objetos e utensílios que encontrava pela casa. A tampa da vasilha de pão redonda era o volante do meu carro. Só para te dar um exemplo.
IMAGINAÇÃO (1)
Imaginação não é válvula de escape da realidade. Ao contrário. É um meio para entrar em contato direto com ela. Imaginar é ir além da informação sobre a realidade para penetrá-la e revelar o que ela esconde. “Imaginação é a arte de combinar e conectar objetos e ideias de modo criativo, justapondo os ingredientes em jogo de maneira nova, evidenciando as partes antes consideradas estranhas. É uma capacidade valiosa também na idade adulta para construir alternativas de vida”, escreve Anna Granata em “Da Piccolo Ero Un Genio” (com belas ilustrações de Margherita Allegri).
Em artigo para o “Rep Ats”, a socióloga Annamaria Testa escreveu: “Imaginar é pensar o que ainda não existe mas poderia existir. Isso inclui vislumbrar alternativas políticas que respeitem os cidadãos e criem um clima de união em torno de ideias relevantes e sustentáveis para a coletividade”. No entanto, a capacidade de inventar uma história, ou de desenhar um lugar fantástico, ou de brincar com as palavras para compor termos novos é reduzida drasticamente da adolescência em diante.
Toda criança é um artista. O problema é como permanecer um artista quando crescer.
Pablo Picasso
IMAGINAÇÃO (2)
Para Ken Robinson, escritor, pedagogo e fundador do Institute of Immagination (iOi), as escolas, em diversas partes do mundo, estão matando a imaginação e a criatividade. A atuação do iOi, instituição sem fins lucrativos sediada em Londres, projeta e entrega programas e plataformas de aprendizado criativo para crianças de 5 a 11 anos. As iniciativas do iOi foram premiadas nos campos das artes, ciências e tecnologias digitais. O centro das atenções está em provocar as crianças para que aprendam a resolver problemas, colaborem, tenham pensamento crítico e sejam curiosas.
Estamos precisando como nunca imaginar uma relação diferente com a natureza e com o planeta; estamos precisando compreender profundamente as fronteiras e as relações entre povos e culturas; e descobrir novas formas de participação social; resgatar a sensibilidade, enfim. São demandas imprescindíveis em política e em economia também, campos nos quais a criatividade e a inovação parecem mortas. Aos 57 anos (completados em 2022), não suporto a ideia de que estaremos condenados a aceitar apaticamente as desigualdades, as injustiças e a crise climática.
AUTONOMIA
A autonomia é uma dimensão da existência que a criança exibe desde os primeiros meses. Mover-se sozinha, aliás, é a primeira estratégia para se tornar um indivíduo livre. Meninos e meninas frequentemente desafiam a gravidade subindo em árvores com uma desenvoltura que a maioria dos adultos não tem. Mover-se em direção à descoberta do mundo expõe a criança a riscos e possibilidades. “Você não pode ser livre sem conquistar essa independência motora. A liberdade de movimento está diretamente ligada à liberdade de pensamento”, escreve Granata.
A liberdade de movimento é uma forma de desenvolver a consciência do próprio corpo e cultivar o pensamento autônomo. Apesar do árido sistema em que fui criado, naquela época (início dos anos 1970) as crianças iam à escola sozinhas. A partir da 5ª série (eu tinha então dez anos) eu entrava no ônibus, pagava a passagem, viajava trinta minutos até a parada mais próxima da escola (pública) e ainda tinha que andar um bocado. Sozinho. Mas as cidades foram se tornando perigosas. Hoje, as crianças são escoltadas (ida e volta) até a escola. Um terrível contexto de limitação motora.
Se você levar sua infância com você, nunca envelhecerá.
Tom Stoppard
DESEJO DE APRENDER (1)
O desejo de descobrir a realidade parece infinito na infância. A experiência com esse desejo nasce da interioridade. Quando sentimos uma força que supera a própria vontade é porque estamos bem vivos. Só os mais ingênuos poderiam acreditar que são capazes de governar essa força. Por si só, nenhum imperativo pode mover o desejo de aprender. Pior: pode até ter o efeito inverso de inibi-lo. Nenhum adulto, nem mesmo uma pessoa influente e carismática, poderá impor a uma criança, por mais aberta e disponível, o gosto pela leitura, por exemplo.
No entanto, os jovens percebem se os adultos que lhes ensinam algo demonstram eles próprios um autêntico desejo de saber; percebem na inflexão da voz e no vocabulário a alegria da descoberta. “A dimensão da descoberta pode ser acionada em qualquer idade, tanto no contexto familiar quanto escolar, ou mesmo na formação profissional. O fato é que pessoas de qualquer idade precisam ter essa oportunidade de transformar o tédio de viver/trabalhar na beleza de aprender. E o berço do desejo de aprender está diretamente associado à língua materna”, afirma Granata.
DESEJO DE APRENDER (2)
No começo do aprendizado da língua materna nasce o desejo de sair de si, de colocar-se em contato com o mundo, de criar algo novo. Frequentemente, idosos e idosas se transformam em crianças, para resgatar aquele idioma ou dialeto da infância que os remete à origem de suas existências. O desejo de conhecimento não brota em espaços neutros. Brota em um berço de sons calorosos e familiares, repletos de emoções e variações. Me lembro pouco da minha infância doméstica, tão pobre de estímulos, mas não esqueço a alegria que senti no primeiro dia de aula.
Foi um momento de entusiasmo e êxtase. O ingresso na escola (sempre pública, no meu caso) materializou minha fome não só de aprender, mas de emancipação de um lar onde a festa e a alegria nunca reinaram. Era uma escola muito pobre, materialmente, mas rica em soluções. Faltavam livros, a merenda era restrita e às vezes não tinha água nas torneiras, mas nós, meninos e meninas, aprendemos a cultivar hortas e construímos uma edícula (em MG se diz “barracão”) de madeira na porta do qual penduramos a placa “Biblioteca” (ali escutei a leitura de “Meu Pé de Laranja Lima”).
EXPRESSIVIDADE (1)
Crianças se expressam por meio de múltiplos canais de comunicação, utilizando todo o corpo. Isso, muito antes de aprenderem as primeiras palavras. A linguagem não verbal (olhares, gestos, postura das mãos, rumores vocais, etc.) varia ao infinito. E pensar que, anos depois, tantos adolescentes frequentemente se veem fora de sintonia, não sabem o que fazer com as mãos, não conseguem exprimir o que sentem, envergonham-se de dançar na frente dos outros. Não apenas adolescentes aliás. A capacidade expressiva em adultos também diminui muito.
Não é uma dinâmica natural, nem espontânea, nem universal. Tem a ver com a nossa cultura, que subvaloriza as diversas formas expressivas. À medida que crescemos somos dominados pela comunicação verbal. A era tecnológica exacerbou isso, mas não sem reduzir a comunicação verbal a frases cada vez mais sintéticas. A escola acaba reforçando em nós a noção (equivocada, a meu ver) de que as linguagens não verbais são meramente acessórias. Não por acaso o português e a matemática vão enterrando pouco a pouco o desenho, o canto, a dança, o artesanato e o esporte.
EXPRESSIVIDADE (2)
Neste exato momento, há professores talentosos magnetizando a atenção de salas de aula de escolas periféricas e pobres como aquela minha, com alunos entre 6 e 9 anos de idade de origens muito diversas e famílias mega complicadas. Infelizmente, esses tais professores, narradores hábeis e empáticos, tendem a ser minoria em qualquer lugar do mundo, me arrisco a dizer. Ingênuo seria acreditar que a perda progressiva da expressividade não afeta também professores formados em ambientes seguros, previsíveis e bem distantes da realidade dos alunos pobres.
Christopher Emdin é um defensor da ciência que usa o hip hop para formar professores melhores. Segundo ele, shows de rap, barbearias e igrejas gospel têm em comum “uma mágica que ao mesmo tempo encanta e ensina”. “Essa tal mágica existe e pode ser ensinada”, ele disse em um famoso Ted Talk em Nova York. Seu método – out-of-school communication – combina debate e colaboração, empregando variadas linguagens (verbais e não verbais), “para fazer aulas mortas ganharem vida, reacender imaginações e mudar a educação”.
INVISIBILIDADES
A expressividade pode pôr fim à invisibilidade. Com o tempo, você passa a acreditar que seus recursos expressivos são insuficientes e, em vez de lutar para aprender novas habilidades e se projetar, você tenta se esconder. Fui assim. Quando criança, escondia o que sabia, apostava na acomodação, me tornava meio que invisível. Por quê? Porque em casa minhas “capacidades infantis extraordinárias” eram vistas como desobediência (o contexto era de ditadura militar). Instaurou-se em mim então um terrível sentimento de culpa por preferir manter distância dos meus pais. Foram necessárias décadas para que eu superasse isso e pudesse me expressar livremente.