Bloqueio criativo é querer/precisar criar algo e não conseguir. Bloqueios criativos afetam artistas de qualquer área da cultura, mas também cientistas, arquitetos, designers, inventores, publicitários, criadores em geral. Quem depende de criatividade para sobreviver sabe que o bloqueio é inevitável. Se ainda não aconteceu com você, acontecerá, e não importa se você tem a vida que pediu a deus ou se está preso na areia movediça da tristeza e do desânimo; tampouco importa o quão calejado você esteja. Milhares de criadores experientes ou iniciantes, profissionais ou amadores, famosos ou não famosos estão neste momento lidando com a secura do poço que até ontem transbordava. Como desbloquear a criatividade?
MAIS DE UM ANO
O período de bloqueio é tão confuso quanto contraditório. É como se de repente você acreditasse que deixou de saber fazer o que mais sabe; é como se do nada você perdesse a motivação para realizar o que sempre te entusiasmou; mesmo não sendo a primeira vez, é como se fosse. Experimentei bloqueios muitas vezes. O último deles durou mais de um ano. Começou a ficar perceptível no início de 2021, ainda em plena pandemia, logo depois que concluí a preparação da segunda edição de “Os Estrangeiros do Trem N“, meu livro ganhador do Prêmio Jabuti em 1998.
Na verdade, não foi uma simples revisão. Eu recriei todo o livro. Terminado esse trabalho, e por força das circunstâncias (pandemia e desemprego), eu tinha todo o tempo do mundo para investir em novo projeto ou retomar projetos engavetados. Em vez disso, afundei em dúvidas sobre quem sou e do que sou capaz. Repetia para mim mesmo “desta vez é sério: o momento de jogar a toalha está se aproximando”. A sensação talvez seja parecida com a de um esportista forçado a interromper a carreira por causa de uma contusão. Mas eu não estava contundido.
PERIGOSO E AMEAÇADOR
A secura do poço de ideias não é um evento qualquer. Impacta todos os âmbitos da existência e consome grande parte das forças. Quanto mais você tenta, mais se sente fraco, impotente e desvalorizado. Isso, até você optar por parar de tentar. Talvez seja estratégico dar um tempo, aliviar as pressões internas, testar outras possibilidades, desviar a trajetória, aterrissar noutro planeta, mas tem de ser uma “desistência” transitória. O problema é ficar remoendo o vazio criativo, que passa a ocupar um enorme espaço em tua vida. Evite-o.
Não ser (ou não se sentir) capaz de voltar a criar é uma sensação horrível. Produz dor, amargura, raiva e inveja. Nesses períodos duros e sombrios, geralmente damos ouvidos ao que nos diz o lado lógico/racional do nosso cérebro, o lado que gosta que as coisas sejam sempre certeiras e previsíveis, como soldadinhos de chumbo marchando enfileirados. O lado racional nos diz que devemos ser sensatos, mas como? Criatividade não tem nada a ver com sensatez! A criatividade mora no desconhecido, e o desconhecido é terrivelmente ameaçador. Mais essa.
IDEAIS DE SEGURANÇA
A experiência, os livros e os estudiosos da criatividade me trouxeram lições imprescindíveis: 1ª) O lado criativo do cérebro não pode ser efetivamente alcançado – ou acionado – apenas pela razão. O cérebro artístico, que todos temos (eu, você, todo mundo), é sensorial. Leia esse “artístico” sempre no sentido de “criativo”, ok? 2ª) Criadores são como crianças. Precisam de apoio, nutrição e compreensão. 3ª) O bloqueio criativo, como qualquer outro tipo de bloqueio, nos dá segurança. A segurança indesejável do “ufa, agora que o poço secou não preciso mais correr riscos sendo criativo”.
A criatividade nunca foi sensata. Por que deveria ser? Por que você deveria criar de modo sensato?
Julia Cameron, autora de “O Caminho do Artista”
É uma segurança falsa, claro, mas que te tranquiliza. Em 15 meses de bloqueio, o que fiz? Me pendurei na tevê. Assisti a dezenas de seriados e filmes, um hobby fascinante, esse meu, mas passivo. Outra coisa que fiz com afinco foi ler sobre os temas candentes da minha psicoterapia, na época: pais emocionalmente imaturos; traumas; abuso psicológico; ruminações mentais; espirais de desvalia, etc. Sorte minha ter podido ocupar o meu vazio criativo (e a minha falta de trabalho remunerado) com atividades artísticas inspiradoras , mas escrever que é bom, nada.
CERTEIRO E RENTÁVEL
Atravessei um longo inverno aqui nos Montes Apeninos (município de Frassinoro) fugindo do ato de criar. Quando você se sente bloqueado, você começa a temer a criatividade, porque ela inevitavelmente irá te arrastar para dimensões desconhecidas. A criação exige leveza, alegria, ilusão, entusiasmo, desvios de rota, escuridões, incertezas, ziguezagues, brincadeiras, caos. Você pode encontrar o que procura onde menos espera. Rale uma cenoura, descasque uma maçã, costure a bainha de uma calça, troque a terra dos vasos de flores, use a imaginação para especular como seria a vida de uma vaca se ela pudesse voar, enfim, observe, sinta, imagine. Nenhuma solução sensorial me resgatava, infelizmente.
Eu sabia que bloqueios criativos precisam ser identificados e removidos, como qualquer outro bloqueio de qualquer outro âmbito da vida. Bloqueio não é escolha. Escolhas tendem a ser para melhor (em tese). E mesmo quando acabam se revelando equivocadas, tuas escolhas não te limitam para sempre. O bloqueio não. Ele é como um fantasma. Você sabe que o fantasma existe porque o viu, mas ninguém acreditaria. Daí você aprende a conviver com o tal fantasma, negando-o e ao mesmo tempo fingindo que se dá bem com ele, e opta pelo que é seguro, certeiro e “rentável”.
ARTISTAS-SOMBRAS
Entre o sonho de agir e o medo de fracassar nascem os artistas-sombras, como diz Julia Cameron em “O Caminho do Artista”. Escrito em 1992, esse livro ainda é um referencial importante para quem quer se desbloquear, tenha você pretensões artísticas ou não. Artistas-sombras são as pessoas que escolheram carreiras-sombras, aquelas próximas à carreira desejada, ou mesmo paralelas a ela, mas não a carreira criativa em si: escritores que optam por serem livreiros; fotógrafos que se tornam publicitários; escultores que vão para a arquitetura; roteiristas que viram críticos de cinema.
Os artistas-sombras são tremendamente autocríticos e passam anos se recriminando por não terem perseguido seus verdadeiros sonhos. O fato é que é preciso muito incentivo e apoio para exercer uma atividade criativa. “Para todos os artistas-sombras, a vida pode parecer uma experiência insatisfatória, com uma permanente sensação de falta de propósito ou de promessas não cumpridas. Eles querem pintar, querem atuar, compor, dançar… Mas têm medo de se levar a sério”, escreve Cameron: “A criatividade é lúdica, mas os artistas-sombras têm dificuldade de brincar”.
OUSADIA E CIVILIDADE
Na minha visão, criatividade não é uma necessidade apenas de atores, bailarinos, músicos e poetas. Todos precisamos de muita criatividade no dia a dia, em situações diversas, que vão desde a capacidade para resolvermos problemas à aptidão para nos divertirmos. É uma demanda eminentemente humana, baseada em curiosidade e vontade de gerar coisas novas, melhorar os ambientes nos quais transitamos, facilitar processos de aprendizagem, aperfeiçoar continuamente o autoconhecimento e desenvolver ideias viáveis.
A imaginação é mais importante que o conhecimento.
Albert Einstein
Muitas vezes, é a ousadia, não o talento, o que nos induz à criatividade. Mas a noção de que o talento é inato ainda emperra a vida de muita gente por aí. A pesquisadora Carol Dweck demonstrou isso em seu livro “Mindset”. Julia Cameron, por sua vez, mostrou que os bloqueios enfrentados por pessoas criativas resultam de visões sociais equivocadas sobre o que é o criar. Pense na carga negativa que os artistas adquiriram na era industrial: loucos, vagabundos, drogados, solitários. Pense na carga negativa que cientistas adquiriram com a ascensão da extrema direita: arrogantes, vagos, corporativos, inúteis. Tempos de fundamentalismos e incivilidades.
A PARTIR DOS PAIS
A criatividade é como o capim. Bastam luz e água para fazê-lo crescer. Os criativos precisam e querem ser valorizados e reconhecidos por suas tentativas e esforços tanto quanto por suas realizações e conquistas. Mas, infelizmente, a maioria deles/delas nunca recebeu o mais importante: encorajamento. O resultado é que talvez nem descubram que são criativos ou que se comportam criativamente. Sendo assim, os bloqueios nascem de noções vagas e negativas sobre nós mesmos. E de onde vêm essas noções negativas? Pais? Professores? Colegas? Chefes maníacos?
Podemos dizer que pais normalmente não dizem aos filhos “tente aí, vai, para ver no que dá”. Artistas jovens (e tímidos), quando absorvem a indiferença dos pais e os seus próprios medos, acabam sucumbindo a espirais de dúvidas. Como disse C. G. Jung, “nada tem influência psicológica mais forte no ambiente e especialmente nos filhos do que a vida não vivida de um dos pais ou de ambos”. “Crianças criativas são instadas a pensar e agir como crianças médicas e advogadas”, critica Julia Cameron: “No máximo, são encorajadas a ver a arte como hobby”.
VELHAS E NOVAS FERIDAS
Concordo com Cameron quando ela diz que, para nos recuperarmos de bloqueios, precisamos ir devagar: “O importante é cicatrizar velhas feridas e não criar novas. Erros são necessários. Tropeços são normais. Progresso (não perfeição) é o que devemos nos pedir, nessa fase”. Lembre-se de que, para se recuperar, você precisa dar a si mesmo permissão para ser (ou voltar a ser) iniciante. Isso aumentará as chances de você exercer tua criatividade conscientemente. Esse conselho vale para qualquer um disposto a expressar sua “arte”, seja em casa, seja no local de trabalho.
A maioria das pessoas criativas bloqueadas não percebe que tem uma mentalidade binária: “Só posso ter ou isso ou aquilo”. Se você se sente bloqueado/impedido de se expressar, reconheça que o “ou isso ou aquilo” é paralisante e destruidor. A ideia de “ou faço arte ou sou feliz no amor”, por exemplo, é um limitador grave. “Ser criativo ou ser bem-sucedido financeiramente” é outro pensamento deletério. A atitude de criar não tem a ver com resultado, necessariamente. Criação é imaginação, prazer, fluência. Você pode fazer o que faz (seja lá o que for) e continuar sendo criativo. Tudo cabe, tudo se encaixa.
ERROS E SABOTAGENS
Se quer ser mais criativo, comece perdendo o medo de estar errado, e evite masoquismos e autoflagelações. Afaste-se de pessoas muito convencionais e/ou tóxicas, que drenam a tua energia criadora. Em vez disso, aproxime-se de gente nutritiva, habituada a criar, e troque experiências. Além disso, você tem de lutar para não reproduzir os preconceitos difundidos por nossa sociedade racional-monetária. Algo que me ajudou: parei de me recriminar por ter ideias que soam meio esquisitas para os outros. Idiossincrasias e esquisitices são naturais em quem ousa trabalhar com o impensável.
A criação de algo novo não é realizada pelo intelecto, mas pelo instinto de brincar, que age por necessidade interior.
C . G. Jung
Importante também você não deixar que a tua insegurança se transforme em autossabotagem. Procrastinação e perfeccionismo são os sinais de autossabotagem mais evidentes. Enquanto estive bloqueado, fui vítima de uma série de desatenções. Desatenção tem a ver com ruminações mentais que, por sua vez, têm a ver com dores emocionais. O futuro me parecia aterrorizante demais para ser contemplado e o passado doloroso demais para ser lembrado. Investi em prestar atenção no aqui agora. O momento presente se tornou então meu único lugar seguro no mundo.
DELICADEZAS E MIMOS
Em contextos adversos, procure incentivar-se com delicadeza, não com exigências agressivas, severas. Friezas e cinismos estavam me fazendo muito mal, na época. Mime-se. Isso mesmo: mimar-se. Cuidar bem de si. O que fiz nesse sentido? Comprei um violão, voltei a tocar. Passei a ouvir música de gêneros diversos, rompendo com o conforto e a previsibilidade que os clássicos e o jazz sempre me deram. Também teve um valor inestimável em minha recuperação andar de bicicleta, jogar xadrez, correr 6km por dia, perder peso e me demorar mais em museus, observando as obras por diversos ângulos.
Sabe qual foi a primeira coisa que notei quando minha criatividade e autoconfiança começaram a renascer das cinzas? Minha vida estava mudando em aspectos não diretamente ligados ao criar. Havia feito faxinas nos armários. Havia doado roupas que não mais me descreviam (até porque havia perdido seis quilos), havia comprado um binóculo para observar pássaros, passei a ler livros infantis e juvenis para imaginar a criança que me impediram de ser. Enfim, você tem de quebrar padrões, experimentar. E entender que as causas dos bloqueios quase sempre são mais profundas do que você imagina. Têm a ver com a tua mente e com as várias formas de preconceito que o mundo expressa em relação às pessoas criativas.
Parabéns pelo texto, você conseguiu resumir em um único texto quase todas as respostas que que eu precisava pra vencer o bloqueio criativo. Por mais textos assim.