Há algum tempo uma voz dentro de mim insistia para que eu escrevesse sobre a voz dentro de nós (risos). Todos temos uma voz interior, com a qual nos relacionamos silenciosamente dia e noite. Ela está presente em todos os âmbitos da nossa existência e nos permite funcionar no caos do mundo. Por outro lado, se ela se tornar um falatório negativista contínuo, pode nos causar sérios problemas tanto físicos quanto emocionais.

DA IMPORTÂNCIA DISSO
O tema das conversas que temos com nós mesmos adquiriu grande importância no campo da da saúde mental nos últimos anos. O livro “A Voz na Sua Cabeça: Como Reduzir o Ruído Mental e Transformar Nosso Crítico Interno em Maior Aliado“, do neurocientista americano Ethan Kross, aborda a introspecção, o autocontrole e seus efeitos em nosso cotidiano. O domínio da voz dentro de nós é um dos fatores determinantes do nosso bem-estar, diz ele.
Não temos como escolher entre ter ou não ter uma voz interior. Ela simplesmente está lá e ponto. Se você é introvertido(a), como eu, entende bem o que estou dizendo. Quem nunca se pegou ouvindo sua voz interior discutindo, por exemplo, o que fazer (ou não fazer) amanhã? “Prestar atenção nos próprios pensamentos e sentimentos e fazer auto-reflexões é o que nos permite imaginar, lembrar, resolver problemas, inovar e criar.”
O RISCO DO FALATÓRIO
Às vezes, o falatório interior assume a forma de um solilóquio desconexo; noutras vezes é um diálogo que temos com nós mesmos sobre uma decisão a tomar; noutras é uma rememoração compulsiva sobre acontecimentos passados (ruminação); pode ser também uma angústia em relação a eventos futuros (preocupação); um ricocheteio de livres associações entre ideias e emoções ou mesmo uma fixação em um sentimento específico, uma expectativa incômoda ou medos de vários tipos.
Um pensamento leva a outro que leva a outro que leva a outro, e o risco de ruminações é altíssimo. Essa tagarelice pode ser pacífica ou furiosa. Pode te mover adiante ou te sabotar. Pode provocar depressão e ansiedade, ou te ajudar a se manter em sintonia com o mundo exterior. O modo como conversamos conosco mesmos influencia também a nossa atenção. Já tentou ler um livro ou se concentrar numa tarefa após uma briga feia com alguém que você ama? É quase impossível.
NEGATIVISMOS CRÔNICOS
Falatórios crônicos são uma característica comum a transtornos mentais como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático. O falatório é também a base de muitas doenças mentais graves. Porém, a falação a que estou me referindo desde o início é a que corrói a saúde mental de pessoas funcionais (“normais”) como você e eu. Outro efeito nocivo do falatório é fazer a gente se comparar com os outros. As redes sociais exacerbaram esse problema.
A voz dentro de nós é resultado de milênios de evolução como espécie. Essa voz nos acompanha durante a vigília e até quando dormimos (nos sonhos, por exemplo). “Ela nos permite funcionar no mundo, atingir objetivos, criar, nos relacionar e definir quem somos de um jeito maravilhoso. Mas, quando se transforma em falatório, muitas vezes se torna tão aflitiva que pode nos fazer perder de vista seus benefícios e talvez até desejar não ter essa maldita voz.”

QUEM CONTROLA?
Quem está no controle? Estou controlando a voz dentro da minha cabeça ou é ela que está me controlando? Sou capaz de perceber pensamentos e sentimentos me arrastando para a confusão ou consigo separar o geral do específico? “A chave para vencer o falatório não é parar de falar consigo mesmo, mas sim descobrir como falar consigo mesmo de forma saudável”, sublinha Kross. Como? Por exemplo, substituindo o falatório incessante por diálogos serenos de você com você, em discurso direto.
Grande parte de nossa vida é a (está na) mente, e a mente tende a vaguear por conta própria. Um mantra cultural do século 21 é a ideia de manter-se no presente, mas é impossível viver no presente, porque isso vai contra a nossa biologia: “Passamos de um terço a metade do nosso estado de vigília não vivendo no presente. (…) Nós nos desacoplamos do aqui-agora tão naturalmente quanto respiramos”. Praticar mindfulness (esvaziar a mente), então, não resolve. Temos que interferir no processo.
OS OUTROS E O CORPO
A ruminação pode ocorrer também em forma “corruminação”. Você procura alguém para conversar sobre seus problemas e, em vez de ajuda, o que obtém é mais e mais incitação ao falatório espiral repetitivo dentro da tua cabeça, aumentando as tuas aflições. Mesmo quando movida por boas intenções, a corruminação é lenha na fogueira. Então, escolha bem a pessoa com a qual se abrir, e tente dar conselhos a si mesmo como você faria com um amigo ou amiga.
As dores emocionais que estão por trás das ruminações costumam ter consequências físicas. “Uma das descobertas mais assustadores que tive”, escreve Kross, “é que o falatório não nos prejudica apenas no âmbito emocional, mas também no corpo.” Enxaquecas, distúrbios gastrointestinais, problemas cardiovasculares, distúrbios do sono, obesidade, dependência química, entre outras, podem ter como uma das causas principais o redemoinho da ruminação.
DISTANCIAR-SE
Por que algumas pessoas conseguem olhar para dentro e entenderem seus sentimentos e emoções e outras desmoronam quando tentam fazer o mesmo? É uma das perguntas que Kross se fez em suas pesquisas. Para pessoas angustiadas, ansiosas e deprimidas a introspecção faz mais mal do que bem: “Nesses casos, os pensamentos dão origem a ciclos negativos que transformam a introspecção em uma maldição”.
A voz interior não tem como ser eliminada, mas dá para usá-la de maneira favorável a nós. Digamos que eu esteja nervoso e me diga assim: “Calma, Sergio, não é o fim do mundo”. Agir dessa maneira, conscientemente e com distanciamento (em terceira pessoa mesmo), ajuda muito, diz ele. Distanciar-se, aliás, é uma técnica fundamental, assim como a técnica da “mosca na parede” (você se vendo sob vários ângulos).
AMBIENTES E CONTATOS
Nossas conversas internas são influenciadas também pelos espaços e contatos físicos. O contato com alguém (por meio de um abraço caloroso), a imersão na natureza, as atividades contemplativas (caminhar na praia, observar obras de arte, etc.) e organizar a casa ampliam o senso de perspectiva. A premissa cientificamente comprovada é simples: a sensação de ordem e controle no âmbito físico produz ordem dentro de nós. [Não por acaso, o livro “A Mágica da Arrumação” (Marie Kondo) é um sucesso.]

A solução passa também pelo arrebatamento. Arrebatamento é a sensação de estar diante de algo intenso que não podemos explicar facilmente. Há uma linha cada vez maior de pesquisas que associa o arrebatamento a benefícios físicos e psicológicos. “O poder operativo do arrebatamento é sua capacidade de nos fazer sentir pequenos, e isso nos leva a ceder o controle da voz interna a uma grandeza maior. Ver ordem e beleza no mundo é reconfortante e torna a vida mais fácil.”
FLUXOS VERBAIS
Nosso fluxo verbal interno desempenha um papel indispensável na criação de nós mesmos, nossa identidade, nosso bem-estar. O cérebro constrói narrativas significativas por meio de um raciocínio, digamos, autobiográfico. Podemos usar a mente para escrever a nossa história pessoal. Isso ajuda a descobrir nossas crenças, valores e desejos; ajuda também a superar adversidades e amadurecer, “gerando uma identidade em contínua construção”.
Linguagem e fragmentos aparentemente desconectados da vida diária compõem o fio condutor de nossa história pessoal. Narramos o que o ocorre conosco (fora e dentro de nós). “As palavras da mente esculpem o passado e, assim, estabelecem uma narrativa para nos guiar no futuro. Ao se ajustar entre diferentes memórias, nossos monólogos internos tecem uma rede neural de lembranças. Se bem utilizado, isso pode fazer muito bem à saúde mental.”